Marcelo Badaró Mattos - UFF
São muitas vezes surpreendentes os caminhos que levam a movimentos
coletivos como as greves. Quem poderia prever que depois de sete anos sem
qualquer greve nacional unificada as Instituições Federais de Ensino Superior
viveriam uma nova greve nacional e com tanta força que recebeu em poucos dias a
adesão dos(as) docentes de 44 instituições, incluindo praticamente todas as que
foram criada nesses últimos anos e a maior parte das grandes federais mais
antigas, como a UFRJ, UFF, UNIRIO e UFRRJ (para ficar no exemplo das do Rio de
Janeiro)? Quem poderia dizer que nas novas instituições e nos novos campi das
antigas, fruto do tão propagandeado processo de expansão formatado pelas regras
do REUNI*, surgiriam os setores docentes e discentes mais mobilizados para esse
enfrentamento? Como imaginar que até naquelas instituições em que surgiu e
implantou-se uma representação docente de caráter oficialista – o PROIFES –,
cujo objetivo evidente é conter as lutas da categoria, fossem ressurgir
movimentos autônomos das(os) docentes, convocando assembleias, contrariando
direções pelegas e construindo também lá a mobilização (e ao que parece em
breve a greve)? Quem apostaria que nas Instituições Federais de Ensino
Superior, que por certo forneceram muitos votos ao atual governo federal na
expectativa de manutenção da política de expansão e dos reajustes salariais
anuais, tão forte e resoluta fosse a adesão a um movimento acusado pelo governo
e os governistas de ser fruto de uma mera manipulação política de setores
oposicionistas?
A dinâmica dos conflitos sociais nos reserva surpresas, mas não nos
dispensa de compreendê-las. Porque uma greve tão forte emergiu nestes últimos
dias?
Para entendê-lo é necessário reconhecer que a pauta do movimento, curta
e direta, representa de fato uma forte insatisfação. A pauta: uma
reestruturação da carreira docente e a melhoria das condições de trabalho.
Sobre a carreira, a questão é simples: após 25 anos de aprovação do Plano Único
que passou a reger a carreira docente, em 1987, sucessivas políticas salariais
para a Universidade depreciaram e desestruturaram a carreira. O que se
reivindica é, basicamente, uma única linha de vencimento nos contracheques (com
a incorporação das gratificações e o entendimento do percentual de titulação
como parte do vencimento), com 13 níveis, steps (percentuais entre os níveis)
de 5%, acesso interno à carreira ao nível de Professor Titular, com paridade
entre ativos e aposentados e isonomia entre professores(as) da carreira do
magistério superior e da carreira de ensino básico, técnico e tecnológico. O
piso para professor 20h no início da carreira seria de R$ 2.329,35 (um salário
mínimo do DIEESE, calculado com base nas necessidades mínimas de um trabalhador
e sua família, conforme dita a Constituição).
O governo acena com uma carreira mais desequilibrada em termos
salariais, com um piso baixíssimo e promoções atreladas a critérios
produtivistas, visando diferenciar um pequeno contingente melhor remunerado
(por projetos e pela atuação em pós-graduações) e uma imensa maioria de
docentes sobrecarregados com a elevação da carga de trabalho em sala de aulas
de graduação. Já quanto às condições de trabalho, cinco anos após o início do
REUNI, as instituições federais criaram centenas de novos cursos e ampliaram em
dezenas de milhares as suas vagas de ingresso discente. O governo, entretanto,
não garantiu até agora nem mesmo o relativamente (à ampliação das matrículas)
pequeno número de concursos públicos para docentes com o qual se comprometeu em
2007. As obras de expansão carecem de verbas para sua complementação, gerando
ausência de laboratórios, bibliotecas e salas de aula nas novas unidades, assim
como superlotação nas antigas. Some-se a isso a enorme deficiência no campo da
assistência estudantil, cada vez mais necessária na medida em que entre os
novos estudantes tendem ingressar contingentes cada vez maiores de
trabalhadores(as) e filhos(as) de trabalhadores(as), sem condições de arcar com
os custos de transporte, moradia, alimentação e material didático minimamente
necessários para a vida universitária.
A greve pode ter colhido a muitos(as) de surpresa, mas está longe de ser
um fenômeno de difícil explicação. Professores e professoras (e estudantes que
aderem ao movimento em muitas universidades) optaram por esse instrumento de
luta porque estão conscientes de sua necessidade diante da deterioração de sua
carreira e das condições de trabalho. E perceberam que ou freiam agora o
desmonte, ou serão arrastados ao fundo do poço em poucos anos.
Greve?
Tão logo a greve foi anunciada, surgiram de imediato combatentes
antigreve no interior das Universidades. Seus argumentos não são novos para
quem já viveu outros processos grevistas. Vale rebatê-los apenas para relembrar
aspectos do passado recente das lutas em defesa da Universidade Pública que
podem escapar aqueles(as) que a elas se integraram nos últimos anos.
Greves paralisam só as graduações e prejudicam apenas os estudantes de
graduação? Tal argumento foi usado principalmente a partir dos anos 2000,
quando a pressão das agências financiadoras/avaliadoras sobre as pós-graduações
para cumprirem metas produtivistas gerou um núcleo de docentes que assumiu
internamente (ou como membros de comitês das agências) o papel de feitores da
produtividade coletiva, alardeando o pânico dos prazos e metas ante qualquer
rumor de questionamento. As greves tradicionalmente pararam aulas de graduações
e pós e podem continuar a fazê-lo. Prejudicam os estudantes?
Momentaneamente prejudicam estudantes, professores e
técnico-administrativos que as fazem, é óbvio, mas significam justamente o
sacrifício de um calendário regular de atividades (com os prejuízos materiais e
pessoais que isso pode representar) em nome de um projeto maior de Universidade
Pública. Assim evitamos a cobrança das mensalidades, com a greve de 1982;
garantimos os direitos dos professores precariamente contratados ao longo da
ditadura, com as greves da primeira metade dos anos 1980; conquistamos a
isonomia entre instituições fundacionais e autárquicas e a carreira docente,
com a greve de 1987; descongelamos as vagas para concursos docentes, com a
greve de 2001; barramos ou derrubamos diversas propostas e práticas desastrosas
para o caráter público e a qualidade do trabalho universitário (projeto GERES;
propostas de “regulamentação” da autonomia; efeitos da reforma do Estado;
carreira de “emprego público”; gratificações produtivistas, quebras de isonomia
e paridade e etc.), e preservamos minimamente os salários (que ainda assim
perderam muito do seu valor de compra ao longo dos anos). Estivemos longe de
fazer greves meramente corporativistas, pois sempre pautamos a garantia da
qualidade do trabalho de ensino, pesquisa e extensão nas universidades, o que
foi sempre reconhecido pelos(as) estudantes, muitas vezes com greves conjuntas,
como a que já ocorre agora em diversas universidades. Seriam os(as) estudantes
tolos(as), que apoiam algo que lhes prejudica tanto assim? Ou o discurso que os
vitimiza em relação à greve é apenas uma artimanha de desqualificação do
movimento e da consciência estudantil?
Desqualificar as mobilizações de trabalhadores e de estudantes,
qualificando-as como produto de minorias e forças “estranhas” (partidos,
sindicatos, intenções políticas oposicionistas) ao corpo social – universitário
neste caso –, é aliás uma das estratégias recorrentes nos argumentos antigreve
dos setores conservadores. Um recurso retórico em tudo congruente com a longa
trajetória de desqualificação da população trabalhadora pelo discurso das
classes dominantes, que no Brasil sempre apontaram as “ideologias alienígenas”
(anarquistas, comunistas, sindicalistas, ou o que seja) como responsáveis pelas
perturbações à ordem, através da “manipulação” de grupos tomados como “massas
de manobra”, enquanto a maioria do “povo” – “ordeiro e pacífico” (claro!) –
assistiu a tudo indiferente, quando não “bestializado”. Teriam tanta força nas
Universidades Federais dois ou três partidos de oposição de esquerda ao
governo, que juntos somaram cerca de 1% na última eleição, para manipularem
segundo seus interesses políticos dezenas de milhares de docentes? São as(os)
docentes universitárias(os) tão parvos assim? E as(os) estudantes também? Se o
Sindicato Nacional é tão carente de representatividade, por que reúne um
contingente tão significativo de associados em suas sessões sindicais? Porque
assembleias supostamente “ilegítimas” reúnem cada uma centenas de
professores(as), que trocam informações, avaliam a situação, discutem e se
posicionam coletivamente? Por certo que o questionamento à legitimidade vem
sempre acompanhado de tentativas de profecias auto-realizáveis: “não vou à
assembleia porque ela é ilegítima e tem pouca participação” (e não indo,
contribui-se para fazer menor a participação e assim arguir sua legitimidade).
O que vem muitas vezes acompanhado de uma fala ainda mais autocentrada de
questionamento dos espaços coletivos de deliberação, não por cercearem a
palavra, mas por aprovarem posturas contrárias às do indivíduo que questiona:
“Já fui muito, mas desisti, pois o espaço é antidemocrático, já que toda vez
que falei contra a greve perdi as votações”.
Há argumentos mais falaciosos, como o de que as greves não geram
resultado algum ou que esvaziam a Universidade dificultando o debate e a
mobilização, ou ainda que docentes recebem seus salários quando fazem greve.
Difícil tomá-los como simples fruto de diferentes visões políticas, pois
falseiam a realidade. A história das greves docentes está sendo cada vez mais
pesquisada e diversos trabalhos acadêmicos já fizeram o balanço e avaliaram a
importância desses movimentos nas últimas três décadas. Um quadro sintético dos
resultados das greves nas Instituições Federais pode ser consultado em http://www.sedufsm.org.br/index.php?secao=greve.
As greves sempre potencializaram o debate – interno às Universidade e público –
sobre as políticas para o ensino superior no país e parar a atividade
universitária é o único meio de garantir mobilizações multitudinárias nas ruas.
Que debate sobre o ensino superior estão fazendo os antigreve em suas aulas
cotidianas? De que mobilizações em defesa da Universidade Pública estão
participando enquanto dão suas aulas? Já quanto aos salários, não seria absurdo
que o direito de greve fosse respeitado e os salários pagos, mas todos(as) se
lembram de como em diversas greves que ultrapassaram um mês de duração os
salários foram cortados (cuidado! O governo corta os salários de todo mundo, inclusive
dos(as) que continuam dando aulas!), como na greve de 2001, em que dois meses
foram sucessivamente cortados e só pagos depois que as mobilizações da greve
arrancaram decisões judiciais favoráveis em meio a “guerras de liminares”.
Não é difícil entender as motivações dos(as) que se propõem a furar uma
greve (fura-greves pode ser um “conceito nativo” com conotação negativa, como
pelego, mas é compartilhado por todos os estudiosos dos fenômenos grevistas nas
Ciências Humanas e Sociais, porque corresponde ao que expressa). Em alguns
casos, acomodam-se a – e reproduzem – determinadas situações de poder; em
outros estão por demais enredados em mecanismos de apropriação privada de
recursos através da Universidade Pública (como cursos pagos e consultorias); algumas
vezes apenas estão aferrados a defesa do governo de “seu” partido. Outras
vezes, um pouco de tudo isso está presente.
Fazer a
greve
As respostas mais significativas aos antigreve sempre foram construídas
pelos próprios movimentos e seus resultados objetivos. Não se trata de docentes
que não aprenderam com as lições do passado, mas de deliberada retomada de
argumentos desgastados para marcar posição e construir a rede de reverberação
interna às arengas conservadoras tradicionais dos governos e da mídia. No
entanto, greves fortes e participativas, como esta está se desenhando desde o
começo, atropelam sem maiores problemas tais tentativas de deslegitimação da
luta coletiva.
Não há como prever os resultados finais da greve, mas desde já se podem
perceber algumas conquistas significativas. Docentes e estudantes que
ingressaram nos últimos tempos nas Universidades participam ativamente de um
movimento coletivo e sentem-se parte de uma comunidade universitária que pode
sim atuar unida em torno de pautas comuns. No reino do individualismo, da
concorrência e do produtivismo, ouve-se um coro de vozes falando como uma só,
fazendo ecoar cantos de solidariedade, dignidade, coletividade e consciência de
classe.
Nessa toada – de uma greve apoiada pela maioria da categoria dada a
justiça de suas reivindicações e que ganha do apoio à adesão dos estudantes
pelo aspecto da defesa da Universidade Pública e da qualidade do ensino –
estamos diante da construção de um movimento suficientemente forte para gerar
repercussão pública, apoio social e, com essas condições, dobrar o governo e
garantir ganhos efetivos. Transformar esse potencial em realidade é o que nos
cabe a partir de agora.