sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Desigualdade em queda? Mentira...


Paulo Schueler*

Na última semana, a divulgação do relatório "Estado das cidades da América Latina e do Caribe - 2012" deixou claro: a redução da desigualdade é o principal desafio na América Latina.

No caso do Brasil, o problema é ainda pior: sexta economia do mundo, o Brasil é o quarto país mais desigual da América Latina, ela mesma a mais desigual do mundo. Afirma o Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU-Habitat) que, na região, somos uma sociedade menos desigual apenas que Guatemala (78º economia do mundo), Honduras (98º) e Colômbia (27º).

Outro dado assustador é que 124 milhões de pessoas vivem sob condições precárias nas cidades latino-americanas, sendo 28% delas (37 milhões) no Brasil. E "puxamos para baixo" o resultado da região, pois a média no Brasil é de 29% enquanto na latino-americana é de 25%.

Pior do que contribuir para a vergonha de todos nossos vizinhos é saber que o relatório da ONU "subnotifica" a desigualdade brasileira. O jornalista Clóvis Rossi deu a senha, em coluna publicada na Folha de S. Paulo, na qual afirma:
"O único metro usado para medir a desigualdade chama-se índice de Gini... Acontece que o índice mede apenas a diferença entre salários. Não consegue captar a desigualdade mais obscena que é entre o rendimento do capital e o do trabalho".

O que isso significa? Que nosso já vergonhoso quarto pior índice na América Latina não leva em conta os dados de renda relativos aos ganhos com geração e pagamento de lucros, juros e aluguéis. Respondam rápido: que país da região passa por uma espécie de bolha imobiliária?
E o que tem as taxas de juros mais elevada? Em qual deles está a principal bolsa de valores, com as maiores companhias? Brasil-il-il!

Sigamos adiante, pela estrutura tributária do Brasil: de quem o governo mais retira rendimento para se manter? É mais que sabido que possuímos uma estrutura regressiva, pela qual a maior parte da arrecadação é proveniente dos impostos sobre o consumo e a produção. Proporcionalmente, os pobres pagam mais imposto que os ricos, quem apenas trabalha paga mais do que quem investe na bolsa ou compra títulos da dívida pública, o que traz elevação da desigualdade.

Segundo o IPEA, um órgão do próprio governo, pessoas com renda de até dois salários mínimos são responsáveis por 54% da arrecadação do Estado. Já as com renda superior a 30 salários mínimos contribuem com apenas 29%.

O quadro torna-se ainda pior quando lembramos que a estrutura de gastos do Estado privilegia as despesas financeiras, os juros e amortizações da dívida pública - justamente onde há ganho de capital.
Voltando a Clóvis Rossi, para termos os números redondos:
"No ano passado, o governo federal dedicou 5,72% do PIB ao pagamento de juros de sua dívida. Já o Bolsa Família, o programa de ajuda aos mais pobres, consumiu magro 0,4% do PIB. Resumo da história: para 13.330.714 famílias cadastradas no Bolsa Família, vai 0,4% do PIB. Para um número infinitamente menor, mas cujo tamanho exato se desconhece, a doação, digamos assim, é 13 vezes maior".

Tantos números não deixam margem para dúvida: a política econômica levada a cabo pelo PT não resultou em redução da desigualdade; pelo contrário: faz, a cada dia, elevar-se o abismo entre pobres e ricos.

Se levarmos em conta as propostas que o governo tem na gaveta, à espera apenas das eleições de outubro, como a retirada de direitos trabalhistas e uma nova reforma da previdência, não precisamos nem esperar: os futuros relatórios da ONU trarão o Brasil em posição mais vergonhosa...
*Paulo Schueler é membro do Comitê Central do PCB

O PROJETO DE FLEXIBILIZAÇÃO TRABALHISTA DA CUT: O QUE É ISSO, COMPANHEIRO?


Rafael de Araújo Gomes,

Procurador do Trabalho em Araraquara/SP

No final de seu segundo mandato, o presidente Fernando Henrique Cardoso encaminhou um projeto de lei ao Congresso com o objetivo de permitir a flexibilização de direitos trabalhistas, através da ampla prevalência do negociado sobre o legislado.
Esse projeto de lei (n. 5.483/2001), que chegou a ser aprovado na Câmara dos Deputados, previa:
“O art. 618 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943, passa a vigorar com a seguinte redação: 'Art. 618. As condições de trabalho ajustadas mediante convenção ou acordo coletivo prevalecem sobre o disposto em lei, desde que não contrariem a Constituição Federal e as normas de segurança e saúde do trabalho'”.

Ou seja, todo e qualquer direito não previsto expressamente na Constituição Federal poderia ser limitado ou excluído por completo através de negociação coletiva, exceto se relacionado à segurança e saúde do trabalho.

Apesar de sua aprovação na Câmara, esse projeto teve a tramitação conturbada e envolvida em intenso conflito, sendo energicamente denunciado pela Central Única dos Trabalhadores (CUT) e pelo Partido dos Trabalhadores (PT) como uma tentativa de flexibilizar direitos trabalhistas e gerar precarização social.

A resistência encabeçada pela CUT e pelo PT, em 2001, acabou ganhando a adesão de grande número de outras entidades e especialistas em matéria trabalhista, entre eles o então presidente do Tribunal Superior do Trabalho, que defenderam inclusive a inconstitucionalidade do projeto.

O assunto atraiu, inclusive, a atenção da Organização Internacional do Trabalho, a partir de provocação da CUT e do PT, como esclareceu Maximiliano Nagl Garcez, da Assessoria Parlamentar do Partido dos Trabalhadores1:
“Respondendo a consulta apresentada pela CUT, a OIT, através do diretor do departamento de Normas Internacionais do Trabalho, Jean-Claude Javillier, condenou formalmente o projeto de flexibilização do artigo 618 da Consolidação das Leis do Trabalho (P.L n. 5.483/01, na Câmara, e agora sob o n. 134/01, no Senado).

A Organização Internacional do Trabalho considera que o projeto, caso transformado em lei, afrontará diversas convenções da OIT reconhecidas pelo Brasil, eis que as convenções e acordos coletivos de trabalho teriam força superior às convenções internacionais ratificadas por nosso país.

O documento da OIT foi encaminhado ao governo brasileiro e às centrais sindicais, e condena a possibilidade de que os acordos coletivos contenham 'disposições que impliquem menor nível de proteção do que prevêem as convenções da OIT ratificadas pelo Brasil'”.

Por esses motivos queixava-se em 2002 José Pastore, um dos principais representantes do pensamento neoliberal no meio trabalhista brasileiro, quanto às dificuldades para se conseguir aprovar com rapidez o projeto:
“O PT e a CUT fizeram um estrondoso alarde durante a discussão do projeto de lei 5.483 que alterou o art. 618 da CLT. Pelos decibéis do alarido, estávamos próximos do fim do mundo. Isso criou no povo um sentimento de grande apreensão. Dizia-se que a nova lei iria revogar toda a CLT; que acabaria com o 13º salário, férias, licença à gestante; que os empregadores imporiam aos empregados condições selvagens; que sindicatos fracos fariam acordos em favor das empresas.”

A tramitação do projeto chegou ao fim quando, em 2003, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva requereu, através da Mensagem n. 78, a retirada do projeto, que então se encontrava no Senado.

De lá para cá passaram-se dez anos, o que não é muito tempo. De fato, em se tratando de convicções políticas e ideológicas sólidas e sinceras, dez anos não deveria ser tempo algum.

Entretanto, o brasileiro que porventura tiver passado a última década fora do país, e tiver retornado em 2012, sofrerá um verdadeiro choque. Ao abrir os jornais, talvez esse brasileiro venha a imaginar que foi magicamente transportado, como em um episódio da série “Além da Imaginação”, para uma dimensão paralela, na qual os fatos ocorrem da forma contrária ao que ocorre em nosso universo.

Esse brasileiro, que em 2002 leu José Pastore criticar a CUT por resistir ao projeto de lei de flexibilização de FHC, agora encontrará nos jornais o mesmo José Pastore dirigindo rasgados elogios à CUT por propor a flexibilização dos direitos trabalhistas: “A ideia é muito boa, porque prevê uma valorização da negociação entre as duas partes. Quando a negociação está amadurecida, é preciso dar oportunidade de fazê-la diferentemente de como a lei [a CLT, de 1943] estabelece”.
Qual é a “idéia muito boa” da CUT, que José Pastore está a elogiar?
Trata-se do Anteprojeto de Lei do Acordo Coletivo de Trabalho com Propósito Específico, elaborado no âmbito do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e que se tornou, instantaneamente, a “menina dos olhos” do meio empresarial e dos veículos de comunicação conservadores, como o jornal O Estado de São Paulo, que publicou em seu editoral: “os novos líderes dos metalúrgicos do ABC substituíram o confrontacionismo de seus antecessores por atitudes cooperativas e relações de parceria. Não só aceitaram o sistema de banco de horas, como também negociaram com as montadoras a flexibilização da legislação trabalhista”.

Ora, lideranças empresariais costumam ser bastante coerentes na defesa de seus interesses, bem como na rejeição de qualquer proposta que redunde em benefício aos trabalhadores e que acarrete ao mesmo tempo algum tipo de reflexo sobre os lucros. E todas essas lideranças estão batendo palmas para a proposta da CUT/Metalúrgicos do ABC.

A aproximação envolvendo CUT/Metalúrgicos do ABC e patronato, nessa matéria, vai além da troca de elogios. Os discursos de um e de outro tornaram-se praticamente indiscerníveis, inclusive no ataque de ambos à CLT, como pode ser visto a partir dos seguintes exemplos:
“As relações de trabalho no Brasil estão sujeitas a uma legislação extensa e detalhada, nem sempre adequada à realidade dos trabalhadores e das empresas (...) trabalhadores e empregadores sempre buscaram superar essa herança limitadora, que se impõe até hoje como um obstáculo ao pleno exercício... da negociação coletiva (...). As recentes tentativas de promover a reforma do sistema de relações de trabalho por meio do diálogo social e da negociação tripartite... esbarraram na resistência conservadora de parte dos representantes de trabalhadores, empregadores e operadores do direito”.
“A extensa e rígida legislação trabalhista... desestimula o mercado formal. A modernização da legislação do trabalho é fundamental para a expansão dos empregos formais (...). A moderna concepção das relações de trabalho pressupõe: sistema regulatório flexível, que permita modalidades de contratos mais adequadas à realidade produtiva e às necessidades do mercado de trabalho; maior liberdade e legitimidade para o estabelecimento de normas coletivas de trabalho, que reflitam a efetiva necessidade e interesse das partes. (...) Um novo sistema de relações de trabalho deve incentivar e priorizar a negociação voluntária e descentralizada, dentro de um marco regulatório básico, não intervencionista.”

Alguém consegue distinguir, nos dois textos acima transcritos, qual é aquele que consta na Agenda Legislativa 2012 da Confederação Nacional da Indústria (CNI), e qual aquele que está na Exposição de Motivos do Anteprojeto da CUT? Eu não mais consigo.
E o que propõe a CUT/Metalúrgicos do ABC através desse Anteprojeto?

Em síntese, o mesmo que buscava Fernando Henrique Cardoso através do Projeto de Lei n. 5.483/2001, e portanto o mesmo que a CUT combatia com unhas e dentes há meros 10 anos atrás: a flexibilização de direitos trabalhistas através da prevalência do negociado sobre o legislado, autorizando sindicatos e empresas a restringir ou eliminar direitos através da negociação coletiva.
Mas com algumas diferenças importantes.
A primeira delas é a seguinte: enquanto o projeto de FHC não autorizava a flexibilização de normas de saúde e segurança do trabalho, necessárias para a preservação da vida e da saúde dos trabalhadores e para a prevenção de acidentes, o Anteprojeto da CUT autoriza flexibilizar inclusive isso. De modo que a aplicação da Norma Regulamentadora n° 18 do Ministério do Trabalho e Emprego, por exemplo, que prevê normas de segurança para o setor da construção civil, poderia ser em todo ou em parte afastada através de um acordo coletivo.

Vejamos outro exemplo: certa empresa poderá ameaçar realizar demissões alegando não ter condições financeiras para instalar proteções coletivas em máquinas como prensas e serras, cujo investimento por vezes é alto. Não se trata de situação hipotética, casos assim são enfrentados diariamente pelo Ministério Público e pela Auditoria do Trabalho. Prevalecendo a proposta da CUT, o sindicato poderá celebrar acordo com a empresa eximindo-a do cumprimento dessa exigência legal, e assim “salvando os empregos”. Pergunto-me, entretanto, se tal resultado constituirá compensação à altura para os dedos, mãos e braços que serão decepados ou esmagados a seguir.

Enfim, a proposta da CUT/Metalúrgicos do ABC consegue ser pior que a de FHC, pois prevê a flexibilização inclusive do direito à vida, à saúde e à integridade física dos trabalhadores.

A segunda diferença está em que o Anteprojeto da CUT prevê duas condições para que um sindicato possa celebrar o acordo coletivo com o propósito específico de flexibilizar direitos trabalhistas: ele precisa obter uma autorização própria a ser emitida pela Secretaria de Relações do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego, e deve constituir o Comitê Sindical de Empresa, definido como “órgão de representação do sindicato profissional no local de trabalho”.

Quanto à primeira condição, sabe-se de antemão de que forma a autorização será concedida: todo e qualquer sindicato que vier a pedir, e possuir algum padrinho político, a obterá. Simples assim. A Secretaria de Relações do Trabalho é, como todos sabem, um órgão político e não técnico. Não por acaso, há muitos anos ela vem autorizando a criação de um novo sindicato por dia no Brasil, como já denunciou o Fórum Nacional do Trabalho, criado pelo Governo Lula e composto por sindicalistas para discutir os rumos da reforma sindical, cujas conclusões foram depois esquecidas: “...o processo de criação de um sindicato hoje no país acaba tendo como único limite a criatividade dos interessados para a denominação das categorias, muitas vezes sem nenhum compromisso com a real segmentação da atividade econômica e profissional2”.

Quanto à segunda condição, sabe-se desde já, também, como funcionará a maior parte dos Comitês Sindicais a serem criados: existirão, de fato, mas apenas no papel, “para inglês ver”, como ocorre há muito tempo com as Comissões Internas de Prevenção de Acidentes (CIPAs), criadas por exigência legal, mas que funcionam na maioria das empresas de forma praticamente fictícia, sem qualquer efetividade.

E cumpridos tais requisitos, vale dizer, obtida através de ingerências políticas a autorização do MTE, e criado formalmente, no papel, o Comitê Sindical, o que acontecerá a seguir? Nada menos que isto: ganhará o sindicato o poder incontrastável de vida e de morte sobre todos os direitos trabalhistas hoje reconhecidos e que não estejam expressamente mencionados no art. 7º da Constituição Federal.

Muitos dirão, então - José Pastore entre eles, e também Sérgio Nobre, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC - que nenhum sindicato (quer dizer, nenhum sindicalista) jamais abrirá mão de direitos trabalhistas, que os acordos trarão apenas benefícios aos trabalhadores, que não se trata de flexibilização, que a negociação é a forma “moderna” e “avançada” de resolver os conflitos, que os trabalhadores e a sociedade só têm a ganhar, etc.
Na condição de Procurador do Trabalho já tive a oportunidade de constatar que as coisas, infelizmente, não ocorrem assim.

Dou um exemplo concreto: em 2008, realizei em conjunto com a colega Larissa Lima uma audiência pública, com a presença de representantes de dezenas de sindicatos de trabalhadores e empregadores rurais da região abrangida pela Procuradoria do Trabalho no Município de Patos de Minas (oeste de Minas Gerais, com forte presença de lavouras de café e feijão, entre outras), que foram alertados quanto a cláusulas que não deveriam ser incluídas em convenções e acordos coletivos.

A necessidade de tal audiência pública se fez óbvia ante a descoberta da proliferação, em toda a região, de acordos coletivos firmados com grandes fazendeiros que previam, entre outras coisas, que: a) o custo das ferramentas de trabalho (enxada e rastelo, por exemplo) seria suportado pelos trabalhadores rurais; b) o empregador era dispensado de fornecer na fazenda água potável e fresca; c) seria considerado como falta o dia em que o empregado não apresentasse a produtividade esperada pelo empregador, d) não haveria limitação ao número de horas extras diárias durante a colheita; entre outros absurdos.

Todos os sindicatos que foram flagrados celebrando acordos assim terminaram assinando com o Ministério Público termos de ajuste de conduta, comprometendo-se a não mais pactuar tais cláusulas, sob pena de multa.

Dou agora exemplos mais recentes, deste ano de 2012 e da rica região do interior de São Paulo que engloba Araraquara e São Carlos, onde me deparei com diversos acordos, celebrados por sindicatos de trabalhadores de categorias tradicionalmente fortes (alguns deles filiados à CUT), instituindo a possibilidade de supressão de anotação da jornada de trabalho, o desconto salarial por horas negativas lançadas no Banco de Horas, a redução do horário para descanso e alimentação para apenas vinte minutos e a sonegação de verbas rescisórias, ente outros problemas.

Ora, no “admirável mundo novo” proposto pela CUT/Metalúrgicos do ABC em seu Anteprojeto, acordos coletivos dessa natureza não poderão mais ser contestados por quem quer que seja - nem pelo Ministério Público, nem pela Justiça, nem pelos próprios trabalhadores atingidos -, pois o sindicato, autorizado pelo MTE e tendo constituído um “Comitê Sindical de papel”, poderá legitimamente celebrar acordos prevendo, entre outras coisas, que o custo da aquisição de instrumentos de trabalho competirá aos próprios empregados, que o empregador não precisa fornecer água, que não mais haverá limitação ao número de horas extras, que o número de dias de férias por ano será reduzido de trinta para dez, ou cinco, que as horas in itinere não precisarão ser pagas, que o salário poderá ser pago não até o 5º dia útil, mas até o 10º, ou 20º, que as normas de saúde e segurança elaboradas pelo Ministério do Trabalho não se aplicam, etc. Normas internacionais, editadas pela OIT, poderão ser desconsideradas todos os dias, o que sujeitará o Brasil a punições no plano internacional, mas internamente o acordo coletivo supressor de direitos não poderá ser questionado.

Vejam que não estou realizando aqui um exercício de “futurologia” ao prever que acordos coletivos serão celebrados nessas condições, em sendo transformado em lei o Anteprojeto da CUT/Metalúrgicos do ABC. Eu já sei que acordos assim serão firmados, pelo simples motivo de que hoje em dia, antes mesmo da aprovação do projeto, acordos desse tipo já são celebrados por inúmeros sindicatos em todas as partes do país.

A única diferença estará no fato de que, após a aprovação da proposta da CUT/Metalúrgicos do ABC, acordos lesivos assim, que hoje são ilegais, não poderão ser questionados e passarão a ser reconhecidos como se lei fossem entre as partes, vinculando os trabalhadores.

Em síntese, nos últimos dez anos operou-se uma radical e surpreendente transformação na postura adotada pela Central Única dos Trabalhadores, sob o influxo de lideranças como Sérgio Nobre: de combatente de propostas neoliberais, tornou-se ela proponente de propostas neoliberais. Da defesa intransigente de direitos trabalhistas, passou ela a se engajar na flexibilização (leia-se eliminação) desses direitos.

Sem dúvida o leitor terá notado que, na maior parte dos casos, referi-me à autoria do Anteprojeto de flexibilização como sendo da CUT/Metalúrgicos do ABC, e não simplesmente da CUT. Não o fiz por acaso. A CUT é uma grande Central, a maior do país, e ainda congrega lideranças e sindicatos batalhadores, envolvidos na defesa dos interesses dos trabalhadores em toda e qualquer situação.

Os ventos que hoje sopram do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, que são muito estranhos, e que poderiam com a mesma facilidade soprar das sedes da FIESP ou da CNI, em sua condenação ao caráter “arcaico e ultrapassado” da CLT, não são uma unanimidade dentro da CUT, longe disso. Há uma batalha sendo travada dentro da Central, com alguns pretendendo torná-la uma cópia da Força Sindical, aproximando-a de propostas de flexibilização e de acomodação aos interesses empresariais, e outros lutando contra isso, por ainda acreditarem no princípio da proteção, na impossibilidade de retrocesso social e nos valores que inspiraram o surgimento da legislação trabalhista.

Espera-se que, em breve, a CUT perceba o enorme risco que está a correr ao negar toda a sua história de luta e todas as expectativas que estão sobre ela depositadas, e anuncie o abandono em definitivo da proposta flexibilizadora de direitos e geradora de precarização social.
Pois uma Central Sindical envolvida com a flexibilização de direitos não será mais uma Central Sindical. Será um balcão de negócios, a maior parte dos quais inconfessáveis.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

30 de Agosto no Paraná: Do Luto à Luta pela Educação


Nota dos editores: esse texto foi publicado há um ano atrás, no entanto, permanece atual pois o governador Beto Richa (PSDB) continua a dificultar novos reajustes salariais, além de manter a pressão para fechar turmas como as de EJA e a pressão pela mudança na grade de aulas diminuindo disciplinas críticas como sociologia ou filosofia para tentar atingir as nefastas metas de provas estaduais e nacionais.

Brasil - Sítio Coletivo - [Julio Carignano] Trabalhadores da educação pública da rede estadual paralisaram suas atividades nesta terça-feira nas principais cidades do Paraná para lembrar da "anti-comemoração" dos 23 anos do fatídico 30 de agosto de 1988, oportunidade em que professores durante uma manifestação foram "recepcionados" no Palácio do Iguaçu pelo aparato de repressão do Estado, a cavalaria da Polícia Militar sob ordens do então governador Alvaro Dias, atual senador do PSDB.


Em Curitiba, professores e funcionários da educação enfrentaram a chuva e percorreram o mesmo trajeto da passeata de 1988, da Praça Santos Andrade até a sede do governo. Os trabalhadores também ocuparam a plenária da Assembleia Legislativa para pressionar a votação do anteprojeto de lei complementar da equiparação salarial da categoria. A proposta prevê o pagamento dos 5,83% negociados com os professores.

O percentual é relativo a aplicação do piso profissional nacional (PSPN) no Paraná, bem como a primeira parcela da equiparação salarial. A proposta do governo é que 3% serão retroativos ao mês de julho. O restante - 2,83% - será pago no mês de outubro. O anteprojeto foi aprovado durante a sessão desta terça-feira (30). Vale lembrar que na campanha eleitoral do ano passado, o atual governador Beto Richa (PSDB) prometeu um reajuste de 26% aos professores estaduais.

A unificação de turmas nas escolas – fantasma quem vem assombrando o setor de educação pública no Paraná – também esteve em pauta no Dia de Luto e Luta da categoria. Desde a quinta-feira passada (25), as escolas vem recebendo planilhas com a orientação para o fechamento de algumas turmas. Segundo os professores, os diretores das escolas foram informados que teriam autonomia nessa prerrogativa, avaliando a situação de cada colégio, porém não é isso que vem acontecendo. Essa orientação vai a contramão de uma das bandeiras da APP-Sindicato, que luta pela diminuição de alunos por salas de aulas.

Os manifestantes reivindicam a aprovação de uma proposta que limite o número de alunos por turma, mantendo a proporcionalidade de professores contratados pelo Estado para que não seja prejudicada a qualidade de ensino. A superlotação das salas de aula além de prejudicar o estudante - dificultando sua concentração – é um complicador para os professores que precisam se desdobrar para conferir um atendimento de melhor qualidade.

Em Cascavel, professores e funcionários também pararam nesta terça-feira e realizaram manifestações. Além das pautas estaduais, a categoria no Oeste reivindicou um melhor atendimento do SAS (Sistema de Assistência Social). Para isso, eles se concentraram no Hospital Santa Catarina, única unidade na cidade que presta esse atendimento aos servidores. De lá, os professores partiram em carreata até a Prefeitura, onde realizaram um ato público. A violência nos colégios do município também foi uma das pautas das manifestações em Cascavel.

Histórico

As manifestações fizeram parte do tradicional Dia de Luto e Luta dos Trabalhadores da Educação. A data é referente ao ano de 1988. Há 23 anos, os professores da rede pública de ensino foram protagonistas de uma greve iniciada no dia 5 de agosto. Eles reivindicavam a volta do piso de três salários mínimos, reduzido para dois salários em 1988. Com o intuito de forçar uma solução mais rápida para a paralisação geral – que então completava 11 dias – professores ocuparam a Assembleia Legislativa, por onde permaneceram até o dia 31.

Um dia antes, no dia 30 de agosto, foi organizado um encontro de núcleos regionais da APP-Sindicato na Praça Tiradentes, em Curitiba, e uma passeata até a sede do governo, onde então os trabalhadores foram "recepcionados" pela cavalaria da PM, com direito - além das ferraduras dos equinos e os cassetetes dos policiais - a gás de pimenta e bombas de efeito moral.

Na época, aproximadamente 30 mil pessoas participavam da passeata. De um lado a multidão, de outro as tropas policiais. Barracas de professores acampados foram pisoteadas, manifestantes foram impedidos de entrar na Praça Nossa Senhora de Salete com carro de som.

Segundo relatos, o pavor tomou conta de todos, com bombas estourando para todos os lados, correria generalizada, transformando o centro cívico de Curitiba em uma verdadeira praça de guerra. Como saldo, vários professores feridos, alguns inclusive impossibilitados – física e emocionalmente – do retorno as salas de aulas.
Questionado hoje em dia sobre o fato, Alvaro Dias - atual senador da República - defende-se afirmando que o triste episódio sempre "foi explorado politicamente e com má fé e que na ocasião foi administrado dentro das possibilidades". Segundo a sua versão, "outras categorias" de trabalhadores teriam se infiltrado na manifestação para provocar tumultos e a cavalaria estaria no local para dar "segurança aos manifestantes".


PS: Vale lembrar que manifestações e mobilizações (mesmo organizadas por determinadas categorias) não precisam ser necessariamente corporativistas. São nos atos públicos que trabalhadores mostram sua solidariedade. Oportunidade em que se deixam de lado as categorias (profissões) para se afirmar como classe (trabalhador).
"Refrescando" a memória sobre episódio de 1988:




Publicado em: http://www.diarioliberdade.org/index.php?option=com_content&view=article&id=19038%3A30-de-agosto-no-parana-do-luto-a-luta-pela-educacao&catid=58%3Alaboraleconomia&Itemid=69

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

As multinacionais e suas responsabilidades na crise alimentar

Os que mais sofrem com os aumentos de preços são os mais pobres, principalmente os urbanos, que usam 60% de sua renda na alimentação

29/08/2012
 
Silvia Ribeiro

Como serpente que morde a própria cauda, o sistema alimentar industrial – que é o principal causador das mudanças climáticas globais -, sacode-se pela perda das colheitas devido à intensa seca nos Estados Unidos. Em algumas áreas, embora haja colheita, ela não pode ser usada porque, por falta de chuvas, as plantas não processam os fertilizantes sintéticos e se tornam tóxicas para o consumo. Tudo está relacionado ao mesmo sistema industrial: sementes uniformes e sem biodiversidade, com agrotóxicos e fertilizantes sintéticos, com alto uso de transportes, energia e petróleo – e portanto com alta emissão de gases de efeito estufa -, e controlado por multinacionais.

No caso do milho, a escassez se exacerba por que 40% da produção nos Estados Unidos são destinadas ao etanol, ou seja, para alimentar carros em vez de gente.
Ao serem os Estados Unidos um dos principais exportadores mundiais de milho, soja e trigo, juntamente com o fato de que 80% da distribuição mundial de cereais está nas mãos de quatro multinacionais, que gerenciam o abastecimento para obter mais lucros, a queda de produção nesse país tem efeito dominó sobre o mercado global, onde os preços dos alimentos estão disparados. Além dos grãos, sobem os preços das aves, suínos e reses, já que mais de 40% da produção de cereais do mundo é utilizada como forragem para a criação industrial confinada de animais. É outro absurdo do mesmo sistema agroindustrial, já que seria muito mais eficiente usar os cereais para alimentação humana e consumir menos carne, ou que as criações fossem em pequena escala com forragens diversificadas.

A criação industrial confinada e massiva de animais é, além de tudo,  a origem de epidemias como a gripe suína e aviária, que por sua vez geram escassez e aumento de preços, como temos visto recentemente no México, com o aumento do preço dos ovos por um surto de gripe aviária.
Os que mais sofrem com os aumentos de preços são os mais pobres, principalmente os urbanos, que usam 60% de sua renda na alimentação.

Pelo contrário, a vintena de multinacionais que controlam o sistema alimentar agroindustrial (da Monsanto à Wall Mart, passando por Cargill, ADM, Nestlé e algumas mais), as que controlam sementes e matrizes de criação, os agrotóxicos, a compra, a distribuição e o armazenamento de grãos(também para biocombustíveis), os processadores de carnes, alimentos e bebidas, assim como os supermercados, são os responsáveis pela crise, mas blindaram-se contra seus efeitos, transferindo os prejuízos para os pequenos produtores, aos consumidores e ao orçamento público. Para elas, o caos climático e a escassez não significam perdas, mas sim aumento de lucros, como acontece com as sementes, agrotóxicos e fertilizantes que se tornam a vender, ou com as empresas que armazenam cereais e os açambarcam, especulando com eles, vendendo-os mais caros, ou com os produtos nos supermercados, cujos preços aumentam muito mais do que a proporção no início da cadeia.

O caso do milho no México é ilustrativo. Apesar de os agricultores do norte do país afirmarem terdois milhões de toneladas para vender, recentemente foram importadas 1,5 milhões de toneladas (transgênicas) dos Estados Unidos, e por outro lado, serão vendidas 150 mil toneladas a El Salvador e outra partida à Venezuela. Anteriormente, tinham sido compradas meio milhão de toneladas da Àfrica do Sul. Absurdo para o clima, pelos transportes desnecessários, e brutal contra a produção nacional. Questionado, o Secretário de Economia, Bruno Ferrari (anteriormente funcionário da Monsanto), lavou as mãos, alegando que era uma decisão de empresas privadas.

Na realidade, como explica Ana de Ita, do Centro de Estúdios para el Campo Mexicano (Ceccam), ocorre que no contexto das políticas para liberalizar a produção agrícola nacional, que precederam a assinatura do TLCAN (Tratado de Livre Comércio da América do Norte – N. do T.), desmantelou-se a semi-estatal Compañia Nacional de Subsistências Populares (Conasupo), que equilibrava o comércio interno de milho, entregando o mercado interno às multinacionais – empresas como Cargill, ADM, Corn Products International, juntamente com grandes criadores suínos, avícolas e processadores industriais de “tortillas”. Estas compram a quem mais lhes convenha, seja por que é mais barato ou por outras razões, como comprar de agricultores com os quais tem contratos de produção nos Estados Unidos.

Esse tipo de empresas – e seus ex-funcionários no governo, como Ferrari – são as que afirmam que é necessário importar milho, porque a produção nacional não é suficiente. Contudo, nos últimos o México tem produzido, nos últimos anos, em torno de 22 milhões de toneladas anuais, com o consumo humano em torno das 11 milhões de toneladas anuais. São usadas em derivados industriais outras 4 milhões de toneladas, restando ainda 7 milhões. Contudo, as empresas importam de 8 a 9 milhões de toneladas anuais adicionais, por que são usadas 16 milhões de toneladas anuais na criação industrial em massa de aves e suínos – também de grandes empresas.

Se a criação fosse descentralizada e com forragens diversas, haveria produção suficiente, sem epidemias e sem milho transgênico de multinacionais, e muito mais fontes de trabalho local. A importação de milho não é necessária ao México, pois é simplesmente um negócio entre multinacionais, permitido e subsidiado pelo governo.

Se as políticas públicas protegessem a produção agrícola e a pecuária diversificada e em pequena escala, com sementes próprias e públicas nacionais, os riscos, - inclusive os climáticos -,teríamos produção alimentar suficiente, acessível e de muito melhor qualidade.

Silvia Ribeiro é pesquisadora do Grupo ETC.
Publicado originalmente no Rebelión.
Tradução do espanhol: Renzo Bassanetti

Publicado em: http://www.brasildefato.com.br/node/10467

Mais de 350 mil operários fizeram greve neste ano



Uma das greves do setor da construção ocorreu em Pernambuco. Centenas de operários que aderiram à paralisação foram demitidos por justa causa

27/08/2012

Vivian Fernandes,
De São Paulo, da Radioagência NP

Mais de 300 mil operários do setor de infraestrutura e da construção realizaram greves no primeiro semestre deste ano. Houve mobilizações grevistas em 20 dos 27 estados do país. Somado a isso, neste mês de agosto, cerca de 51 mil trabalhadores paralisaram. O balanço foi divulgado pela Federação Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Pesada (Fenatracop).
As greves se concentram nas obras do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), nas áreas de construção, montagem industrial e óleo e gás. A maioria nas regiões Nordeste, Norte e Centro Oeste do Brasil. Os pisos salariais dessas regiões são cerca de 30% menores que os do Centro-Sul, assim como as médias dos demais salários e benefícios.
Uma das greves ocorreu em Pernambuco, na Refinaria Abreu e Lima, da Petrobras. A paralisação teve início em 1º de agosto e após 20 dias foi encerrada por uma ordem judicial. Na volta ao trabalho, centenas de operários que aderiram à greve foram demitidos por justa causa.
Os sindicatos ligados à categoria divergem quanto ao número de demitidos, que varia de 500 a 1 mil operários, de um total de 44 mil que atualmente trabalham no local.

Publicado em: http://www.brasildefato.com.br/node/10433

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Acordo Coletivo de Trabalho com Propósito Específico é a negação dos direitos trabalhistas. Entrevista com Graça Druck

Fonte: MPT

Graça Druck

"A proteção social e a garantia dos direitos através da legislação e das instituições que operam o direito do trabalho são, mais do que nunca, indispensáveis nos dias atuais”, constata a socióloga.
Confira a entrevista.

“É difícil encontrar algum aspecto positivo” no Acordo Coletivo de Trabalho com Propósito Específico, proposto pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, e que estabelece a possibilidade de negociação entre os sindicatos e as empresas, avalia Graça Druck, em entrevista concedida à IHU On-Line. Depois de analisar a proposta do acordo, a especialista em sociologia do trabalho assegura que a “iniciativa reflete uma proposição sindical que se pauta numa compreensão política na relação capital/trabalho no Brasil de hoje, que se junta à voz empresarial a respeito do que significa ‘modernizar as relações de trabalho’”. E reitera: “Por trás dessa modernização, sempre vista como algo positivo, o que já denota incompreensões, está um profundo processo de precarização do trabalho no mundo e em nosso país”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Graça Druck enfatiza que o Acordo Coletivo de Trabalho com Propósito Específico é “a negação dos direitos trabalhistas conquistados pelos trabalhadores brasileiros e incorporados na CLT”. Em sua avaliação, a argumentação de que um acordo flexível entre empresas e sindicatos “sustenta-se nas transformações do trabalho nas últimas décadas (...), faz uma avaliação apologética dessas mudanças que estão sob o signo do neoliberalismo, da reestruturação produtiva e da perversa financeirização da economia que só tem destruído empregos e postos de trabalho”.
Apesar das fragmentações nacionais e da crise do movimento sindical, a pesquisadora assinala que iniciativas, como a dos Indignados na Europa e do Occupy Wall Street nos EUA, representam uma mudança no movimento social e sindical. “Talvez o grande desafio para o movimento sindical brasileiro e no mundo esteja em compreender a natureza dessas lutas contra a crise e o lugar dos sindicatos nesse processo”. E dispara: “É necessário repensar essa relação na perspectiva de ‘politizar’ a luta sindical, isto é, de sair da defesa corporativa, da luta estrita por reivindicações econômicas e avançar numa luta social e anticapitalista, como indicam os movimentos contra a crise mundial. É preciso pensar, portanto, numa organização horizontalizada, constituindo redes de contrapoderes que rompam com a cultura sindical hegemônica sustentada na separação, na divisão, no fracionamento, na individualização que o corporativismo criou, colocando em risco os direitos trabalhistas conquistados”.
Graça Druck é doutora em Ciências Sociais pela Universidade de Campinas – Unicamp, com pós-doutorado na Universidade de Paris XIII, França. Leciona Sociologia na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – De forma discreta e pouco comentada, avança a criação de uma figura nova na legislação trabalhista denominada Acordo Coletivo Especial – ACE. A senhora poderia explicar do que se trata essa iniciativa?

Graça Druck – Tomei conhecimento dessa proposta em abril deste ano, através do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT quando li a conjuntura da semana, que faz uma análise de conjuntura a partir de um clipping de notícias de jornais que recebo por e-mail. E, sinceramente, não entendi e pensei que havia algum equívoco na notícia veiculada. Então fui pesquisar através dos sites de busca e encontrei a própria proposta desse Acordo Coletivo Especial – ACE no site do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, na forma de cartilha, com uma análise sobre as transformações do trabalho e dos sindicatos no Brasil, especialmente referenciada na experiência do próprio sindicato com os comitês sindicais de empresas e de uma estratégia de atuação que se reivindica de iniciativas de natureza tripartite, como foi o caso da câmara setorial da indústria automotiva no início dos anos 1990, durante o governo Collor de Mello. Pois bem, trata-se de um anteprojeto de lei, denominado de Acordo Coletivo de Trabalho com Propósito Específico, que estabelece a possibilidade de acordo entre um sindicato profissional e uma empresa a partir de negociação entre estes.

IHU On-Line – O que há de positivo na iniciativa e o que há de problemático?

Graça Druck – É difícil encontrar algum aspecto positivo. Essa iniciativa reflete uma proposição sindical que se pauta numa compreensão política na relação capital/trabalho no Brasil de hoje, que se junta à voz empresarial a respeito do que significa “modernizar as relações de trabalho”. Por trás dessa modernização, sempre vista como algo positivo – o que já denota incompreensões –, está um profundo processo de precarização do trabalho no mundo e em nosso país. Em meus estudos, com base na literatura brasileira e estrangeira e em pesquisas empíricas realizadas por nosso grupo de pesquisa na UFBA, a precarização social do trabalho se tornou o centro da dinâmica do capitalismo mundializado. Isso tem se expressado de diversas formas: nos altos índices de desemprego e em vínculos precários e intermitentes de emprego; na intensificação do trabalho com aumento das jornadas (a exemplo do banco de horas) e de altos níveis de produtividade; nas formas de controle sobre o trabalho, o que tem disseminado o assédio moral como estratégia de poder; no adoecimento dos trabalhadores; na fragilização política dos sindicatos que estão pulverizados, muito em decorrência da terceirização, que divide e discrimina os trabalhadores; e de uma pandemia de desrespeito aos direitos trabalhistas.

Nesse último caso, o empresariado encontrou apoio no meio sindical, ao criticar o descompasso da CLT com essa modernização no trabalho. De acordo com a cartilha sobre o ACE, publicada peloSindicato dos Metalúrgicos do ABC, a CLT já teria cumprido o seu papel e, embora reconheça que define regras básicas para a relação capital/trabalho, posicionando-se em favor do mais fraco, enfatiza que “a lei tolhe a autonomia dos trabalhadores e empresários, impondo uma tutela pelo Estado que, como toda tutela, se converte em barreira para o estabelecimento de um equilíbrio mais consistente. Onde existe controle excessivo e regras engessadas, a liberdade morre” (ACE, Tribuna Metalúrgica, Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, p. 13).

A negação dos direitos trabalhistas

Interpreto essa análise como a negação dos direitos trabalhistas conquistados pelos trabalhadores brasileiros e incorporados à CLT. A estrutural desigualdade e assimetria na relação capital/trabalho se tornou muito maior na era da acumulação flexível. Portanto, a proteção social e a garantia dos direitos através da legislação e das instituições que operam o direito do trabalho são, mais do que nunca, indispensáveis nos dias atuais. E, quando o argumento para essa inovação sustenta-se nas transformações do trabalho nas últimas décadas, sugerindo que é necessário se adaptar a esse “mundo novo”, faz uma avaliação apologética dessas mudanças que estão sob o signo do neoliberalismo, da reestruturação produtiva e da perversa financeirização da economia, que só tem destruído empregos e postos de trabalho. Limitar a regulação do trabalho, afirmar sobre o engessamento da legislação em nome da “livre negociação”, é um dos princípios do liberalismo dos tempos modernos.

Assim, afirmar que a CLT está ultrapassada, com este tipo de argumento, é um risco muito grande, além de criar uma situação mais problemática e arriscada para os trabalhadores, quando defende individualizar as relações de negociação entre sindicato e empresa, conforme afirma a cartilha: “Um passo fundamental para inovar no campo das relações de trabalho é reconhecer que a atual legislação não dá conta de resolver todas as demandas e conflitos, tampouco superar e atender às expectativas dos trabalhadores e empresas em situações únicas, específicas, para as quais a aplicação do direito no padrão celetista não mais alcança resultados satisfatórios” (ACE, Tribuna Metalúrgica, Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, p. 39).

IHU On-Line – A iniciativa pode ser interpretada como uma nova versão do princípio que o “negociado prevalece sobre o legislado”?

Graça Druck – A justificativa da proposta do anteprojeto do ACE, conforme já afirmei, converge com aquela defendida pelas instituições patronais e pelo governo federal à época do projeto conhecido como o “negociado sobre o legislado” (Projeto de Lei n. 5483/2001 para alterar o Artigo 618 da CLT – que propunha “as condições de trabalho ajustadas mediante convenção coletiva ou acordo coletivo prevalecem sobre o dispositivo em lei desde que não contrarie a CF e as normas de segurança e saúde do trabalho”), apresentado ao Congresso Nacional pelo governo Fernando Henrique Cardoso. Na defesa do próprio presidente: “O princípio básico para a modernização das relações trabalhistas está na livre convergência de interesses, como forma de resolver os conflitos, em vez de negá-los ou de submetê-los à tutela do Estado” (CARDOSO, F.H., Avança Brasil: proposta de governo. Brasília: s. ed., 1998-A., p. 75).

Na defesa da Confederação Nacional da Indústria – CNI, a mesma perspectiva: “É, pois, estratégico para o Brasil a adoção de um modelo de relações de trabalho que, além de basear-se na flexibilização de direitos, na livre negociação e em mecanismos de autocomposição, reduza o excesso de regulação, de modo a redefinir um rol mínimo de direitos fundamentais que leve em consideração as singularidades e as múltiplas diferenças das condições existentes nas diversas regiões do país, deixando que os interesses e as exigências das partes diretamente envolvidas se ajustem em função de suas possibilidades e necessidades. O exercício permanente e dinâmico da livre negociação entre os atores sociais é o caminho para solucionar, de modo eficaz, preventivo e não intervencionista, as situações de conflito e, ao mesmo tempo, vincular empregadores e trabalhadores ao exercício de uma negociação subordinada ao interesse geral, por adesão consciente e voluntária” (Agenda Legislativa da Indústria. Brasília: CNI, COAL, CAL 1998, p. 44; 1999, p. 51).

Os argumentos do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC para o ACE são muito semelhantes, pois, segundo a cartilha do ACE, trata-se de “retomar o debate democrático sobre modernização das leis do trabalho, sem medo de experimentar novos procedimentos de negociação permanente entre empresas e trabalhadores. Em duas décadas de normalidade constitucional, aos poucos, as greves deixaram de ser respondidas imediatamente com repressão e demissões, embora aqui e ali o Brasil de 2011 ainda observe lamentáveis repetições dessa velha atitude. (...) O autoritarismo do passado abre lugar a comportamentos empresariais responsáveis. Em todas as regiões é possível registrar experiências novas, de convivência pautada pelos princípios básicos da democracia. Não cabe falar em parceria. Nem em pacto. A relação entre empregadores e trabalhadores seguirá sempre pautada por evidentes diferenças nos interesses econômicos e sociais. Trata-se, isto sim, de adotar uma convivência respeitosa, onde todos reconhecem a existência dos desacordos e respeitam as regras do jogo num clima de negociação permanente” (ACE, Tribuna Metalúrgica, Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, p. 30).

Ao comparar as defesas da negociação entre sindicatos e empresas versus a legislação na opinião empresarial, na posição do então presidente da República, FHC, e na visão do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, apenas quero demonstrar a sintonia nas posições que, nos anos 1990, era ainda muito pequena, já que grande parte do sindicalismo brasileiro e, em especial a CUT, resistia ao “negociado sobre o legislado”.

IHU On-Line – A iniciativa do Acordo Coletivo Especial – ACE vem do sindicato dos metalúrgicos do ABC. Não se trata de uma proposta corporativista? Como a senhora interpreta a ação sindical dos metalúrgicos do ABC que já foram a vanguarda da luta operária? Uma das principais bandeiras de lutas recentes do sindicato foi a redução da alíquota do imposto de renda. Não é pouco para um dos principais sindicatos brasileiros? Não estariam desconectados das lutas mais gerais da sociedade?

Graça Druck – Nos estudos da sociologia do trabalho no Brasil, especialmente os que tratam do sindicalismo, muito tem se discutido sobre a história dos sindicatos brasileiros. Há várias teses que mostram as lutas sindicais antes de 1930, quando predominavam sindicatos livres, e muitas outras que analisam a estrutura sindical criada por Getúlio Vargas, bem como o seu desenvolvimento até os dias atuais. Há certo consenso dos estudiosos no que se refere ao papel nefasto da legislação, que criou uma estrutura sindical sob controle do estado e que definiu os sindicatos como órgãos de colaboração de classes e, portanto, de natureza corporativa. Entretanto, a história das lutas dos trabalhadores em vários momentos impôs fissuras neste modelo. As greves do ABC no final dos anos 1970, nos anos 1980 e o surgimento do “novo sindicalismo”, para citar conjunturas mais recentes, são exemplo das possibilidades de fazer frente a essa estrutura pela força das mobilizações dos trabalhadores, criando as condições para uma efetiva autonomia e liberdade sindical.

Embora a Constituição de 1988 tenha contemplado modificações na estrutura sindical, não alterou elementos fundamentais, a exemplo do imposto sindical, dentre outros. O comportamento de direções sindicais ainda presas a esse modelo ou que incorporaram a cultura política do corporativismo demonstra que esse modelo criado por Vargas ainda está vivo, mesmo depois de 77 anos. Há quem denomine esse comportamento de neocorporativismo que, no caso do ABC, penso que foi exemplar a câmara setorial da indústria automotiva. Mais recentemente, os acordos na defesa dos empregos do ABC ou mesmo de São Bernardo do Campo, frente à guerra fiscal e ao chamado deslocamento industrial, também caminharam na mesma direção: um comportamento que fraciona os trabalhadores em nome de negociações individualizadas, regionalizadas e descoladas das lutas mais gerais dos próprios metalúrgicos brasileiros.

IHU On-Line – Qual é o balanço que faz do movimento sindical brasileiro? Há uma tendência de cooptação na relação sindicatos/governo?

Graça Druck – É difícil fazer esse balanço em resposta a uma pergunta. Mas poderia dizer que, tomando por referência alguns estudos e análises mais recentes, a exemplo das análises dos sociólogosChico de Oliveira, Ricardo Antunes e Marcelo Badaró, tendo a concordar que, a partir do governo Lula, houve uma política de cooptação das lideranças sindicais. Essa cooptação se deu de várias maneiras: no plano mais individual, através de cargos no aparelho do Estado e nas empresas estatais, esvaziando os sindicatos de seus principais quadros, numa conjuntura em que os sindicatos tiveram muito pouca renovação, dada a diminuição das lutas e da resistência sindical nos anos 1990. O caso mais exemplar foi o presidente da CUT assumir o Ministério do Trabalho e Emprego.

Essa nova inserção dos sindicalistas criou um ambiente de promiscuidade entre Estado, sindicatos e governo, confundindo governo/estado e sindicatos/central sindical, o que só fez reforçar o antigo modelo sindical criado por Getúlio Vargas. No plano político mais geral, também foi reforçado e potencializado algo que já vinha acontecendo no meio sindical: a partidarização dos sindicatos, isto é, uma política de usar o sindicato como instrumento de reprodução do programa ou das proposições do partido. E, no caso do PT, isso ficou mais complicado ainda, pois os sindicatos passaram a ser utilizados como órgãos de defesa do governo (do PT), e não da categoria profissional que ele representa. Uma situação que ultrapassa o modelo de “sindicalismo de estado” para um “sindicalismo de governo”. Situação exemplar desta política foi o caso, que conheço mais de perto, pois está no interior do segmento ao qual pertenço – docentes das universidades federais –, da criação de uma instituição nacional chamada Federação de Sindicatos de Professores e Professoras de Instituições Federais de Ensino Superior – Proifes, criada com o incentivo do Ministério da Educação, como fórum em 2004 e transformado em federação em 2012, para fazer frente ao ANDES – sindicato nacional, fundado como associação em 1981, e transformado em sindicato em 1988, cujas direções buscaram manter a representação dos docentes universitários sem se confundir com o governo. O Proifes reúne sete associações de instituições federais de ensino de um total de 59, e tem atuado na defesa intransigente do governo federal, conforme demonstrado na atual greve nacional dos docentes das universidades federais, negociando e assinando um acordo com o governo que foi rejeitado por professores de 57 instituições.

IHU On-Line – Quais são os principais desafios que se apresentam para o movimento sindical brasileiro?

Graça Druck – A história recente dos sindicatos no Brasil é muita rica. Penso que estamos entrando numa nova fase inspirada nos movimentos sociais que lutam contra a crise mundial, a exemplo dosIndignados na Europa e do Occupy Wall Street nos EUA. Uma das principais reivindicações desses movimentos é por emprego. Não foram os sindicatos nem as centrais sindicais que iniciaram essas mobilizações. Foram chegando aos poucos e aderindo às manifestações. Talvez o grande desafio para o movimento sindical brasileiro e no mundo esteja em compreender a natureza dessas lutas contra a crise e o lugar dos sindicatos nesse processo. Isso porque existe uma forte tradição, tanto no plano das práticas políticas como no campo dos estudos acadêmicos, de separar o movimento sindical do movimento social, e até mesmo de criar certa concorrência entre eles. Considero que é necessário repensar essa relação na perspectiva de “politizar” a luta sindical, isto é, de sair da defesa corporativa, da luta estrita por reivindicações econômicas e avançar numa luta social e anticapitalista, como indicam os movimentos contra a crise mundial. É preciso pensar, portanto, numa organização horizontalizada, constituindo redes de contrapoderes que rompam com a cultura sindical hegemônica sustentada na separação, na divisão, no fracionamento, na individualização que o corporativismo criou, colocando em risco os direitos trabalhistas conquistados.

Nessa perspectiva, cabe informar e divulgar uma reação a essa proposição do ACE, consubstanciada no manifesto “Não ao Projeto de Acordo com Propósito Específico do SMABC”, por iniciativa de juízes do trabalho, que conta hoje com a assinatura de autoridades no campo das instituições do direito do trabalho no Brasil, como juízes, advogados trabalhistas, auditores fiscais, procuradores do trabalho, bem como profissionais e estudiosos sobre o mundo do trabalho no país, que se contrapõem radicalmente a essa tentativa de desrespeito ao Direito do Trabalho. Um movimento para além dos sindicatos, expressando uma luta política de membros de instituições da sociedade civil e de instituições operadoras do direito do trabalho no país na defesa dos direitos dos trabalhadores.

IHU On-Line – Como a senhora vê o governo Dilma em relação à agenda do trabalho? Há iniciativas interessantes ou retrocessos?

Graça Druck – Até o momento não consegui identificar nenhuma medida do governo Dilma em relação à agenda do trabalho que representasse um avanço efetivo para os trabalhadores. Em linhas gerais, ela deu continuidade às principais políticas do governo Lula, que priorizaram os programas sociais e focalizados, a exemplo do Programa Bolsa Família. Entretanto, no campo da flexibilização da legislação trabalhista, o governo retoma as decisões do Fórum Nacional do Trabalho – FNT, criado por ele em 2003, cujas proposições foram resultado de um consenso entre governo, centrais sindicais e empresários. Cabe ressaltar duas propostas de mudanças que constam no relatório final do FNT: 1) a representação nos locais de trabalho será feita através de representação sindical, ou seja, sob o controle e direção dos sindicatos; e 2) a negociação coletiva como processo obrigatório, cujo marco normativo deve levar em conta as diferentes realidades (dos setores, de empresas, de trabalhadores), “...ressalvados os direitos definidos em lei como inegociáveis”. Naquela época, minha análise era que essas proposições já indicavam, no primeiro caso, a desistência na luta pela organização autônoma por local de trabalho, tão reiteradamente defendida pelos documentos dos congressos da CUT até início dos anos 1990. E, no segundo caso, sobre a negociação, uma definição que expressava o esforço pelo consenso entre trabalhadores e empregadores a respeito do tão combatido projeto do “negociado sobre o legislado” pelo PT e sindicatos cutistas e, ao mesmo tempo, tão defendido pelas entidades patronais.

O que se vê neste momento é que o anteprojeto do ACE trata-se de uma reedição dessas duas proposições, quando define os Comitês Sindicais de Empresa como representação do sindicato profissional no local de trabalho, como peça-chave para que o Ministério do Trabalho “habilite”, ou seja, autorize que esse sindicato tem a liberdade (concedida pelo Estado) para negociar com a empresa. E a definição da prevalência da negociação de um sindicato com uma empresa em termos de normas e condições específicas de trabalho, agora com “segurança jurídica”, pois sindicatos e empresas passarão a “gozar de liberdade para fixar particularidades que nenhuma lei, por mais detalhista que seja, conseguiria definir com eficácia” (ACE, Tribuna Metalúrgica, Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, p. 42).

Portanto, o que o governo Lula não conseguiu implementar em dois mandatos, em termos de flexibilização da legislação do trabalho, já que a maior parte das decisões do Fórum Nacional do Trabalho ficou em suspenso e não tramitou no Congresso Nacional, o governo Dilma busca implementar agora com o envio do Projeto do ACE, já assumido pelo secretário-geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, como uma proposta do Executivo. A diferença em relação ao FNT é que, agora, a origem da proposta não é de um fórum tripartite ou de negociação entre sindicatos e empresários, mas tem a autoria e fervorosa defesa de uma instituição de representação dos trabalhadores: o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. E, nesse caso, considero essa iniciativa do governo um retrocesso.

IHU On-Line – Em sua avaliação, por que o governo vem endurecendo na negociação com os servidores federais? Quais são os riscos dessa postura de enfrentamento?

Graça Druck – Essa é a questão mais difícil de responder e, ao mesmo tempo, muito instigante. Isso porque estou diretamente envolvida nesse movimento dos funcionários públicos federais, já que sou professora da Universidade Federal da Bahia. A greve dos docentes foi a primeira a ser deflagrada e já começou forte com a adesão de 30 universidades na primeira semana. E chegou a atingir 58 de um total de 59 instituições federais de ensino. Seguiram-se a deflagração da greve dos funcionários técnico-administrativos e também dos estudantes das universidades. Hoje completam-se 90 dias de greve dos docentes. O que me levou a aderir à greve? E por que o movimento cresceu com essa força? O que motivou os professores das universidades federais a paralisarem as suas atividades e passarem a se reunir para discutir as suas responsabilidades como docentes e produtores de conhecimento?
Porque estamos vivendo uma situação-limite. Estamos em condições de trabalho que têm comprometido a nossa saúde e a qualidade do ensino e da pesquisa que realizamos. Segundo dados da própria UFBA, ela sofreu uma significativa ampliação do número de estudantes de graduação – 40% nos últimos 10 anos – e de pós-graduação – 59%, só no campus de Salvador, o que era um desejo da sociedade. Entretanto, nesse mesmo período, o número de docentes cresceu apenas 15% e o de funcionários técnico-administrativos reduziu em 2%. Uma ampliação, portanto, que não levou em conta o que é crucial para dar sustentação a esse justo aumento de estudantes: um quadro de professores e funcionários que possa atender de forma decente a esse crescimento.

Condições de trabalho

Mas quais são as reais condições de trabalho, hoje, na universidade? Vivemos exercendo uma polivalência sem limites: aulas na graduação e pós-graduação com orientações de projetos de dissertações de mestrado e teses de doutorado; coordenação e execução de projetos de pesquisa individual e/ou coletiva; escritores e editores de publicações; gestores nas instituições universitárias (chefias de departamento, colegiados de cursos, diretores de unidades, colegiados de pós-graduação, pró-reitorias e inúmeros cargos de comissões acadêmicas e de ensino); captadores de recursos através da participação em editais de pesquisa, extensão e de infraestrutura; administradores de recursos com inúmeros relatórios técnicos e financeiros de prestação de contas; executores de atividades burocráticas em substituição à inexistência de funcionários técnico-administrativos; dentre outras. Além disso, o trabalho docente tem se desenvolvido em uma estrutura insuficiente e precária: laboratórios, salas de aula, bibliotecas, elevadores etc. que não contam com uma política permanente de manutenção, degradando ainda mais as condições de trabalho.

Desvalorização

Vivemos uma situação de crescente desvalorização do nosso trabalho. No conjunto do serviço público federal, os profissionais da educação estão entre os que recebem os mais baixos salários. A atual estrutura da nossa carreira cria uma forte desigualdade entre os docentes, aprofundada pela progressiva perda de direitos implementada por medidas provisórias e decretos-leis, a exemplo da reforma da previdência que impõe às mais novas gerações de docentes retirar, dos seus já insuficientes salários, uma parcela para pagamento de previdência privada, se quiserem ter uma aposentadoria que lhes garanta uma sobrevivência digna.

Nessa situação, houve intransigência do governo. Havia um grupo de negociação com os sindicatos nacionais dos docentes e governo desde 2010 sobre a carreira docente e o governo adiou sistematicamente a apresentação de uma proposta. As condições objetivas de trabalho e a indisposição do governo para a negociação levaram a deflagração da greve.

Hoje são 350 mil funcionários públicos em greve, atingindo 30 setores de atividades. Sem dúvida a maior greve já ocorrida. A abertura das negociações, através do Ministério do Planejamento e Gestão, que tem centralizado as negociações com as diversas categorias em greve, demorou muito. E as propostas apresentadas não estão sendo aceitas porque estão muito distantes do que está sendo reivindicado.

Ao contrário do que afirmava em seu discurso eleitoral, a presidente Dilma não tem tomado medidas para valorizar o serviço público no país, em especial a educação pública. E, no que se refere ao conjunto do funcionalismo, resolveu adotar medidas repressivas, como o corte de ponto e a substituição dos grevistas em determinados setores que interferem diretamente sobre a atividade econômica, bem como a ameaça de improbidade administrativa aos dirigentes de instituições federais, a exemplo dos reitores das universidades. Essas medidas têm causado graves danos políticos ao governo, a exemplo de defecções internas de ocupantes de cargos de confiança na administração pública, e da reação das centrais sindicais alinhadas com o governo, como a CUT, que tiveram que sair na defesa do direito de greve e do movimento do funcionalismo público, questionando a posição do governo. Sem dúvida, um desgaste político do governo que ainda não se pode avaliar quais dimensões poderá atingir, pois até o momento a tendência tem sido o crescimento da greve em resposta à atuação do governo Dilma.

Para ler mais:
· 09/07/2012 - Projeto regulamenta comissão de fábrica e cria alternativa à CLT
· 04/05/2012 - Governo prevê flexibilizar CLT para facilitar acordos trabalhistas
· 03/08/2012 - Previdência e CLT na agenda após eleições
· 17/09/2009 - Lula propõe uma nova versão da CLT, a "Consolidação das Leis Sociais"
· 21/12/2008 - Empresas querem "flexibilizar para baixo" a CLT, afirma sociólogo
· 19/12/2008 - Lula critica empresários que demitem e descarta abrir debate sobre a CLT
· 20/11/2007 - Trabalhadores e empresários vêem riscos na proposta de reforma da CLT
· 30/07/2007 - Reforma trabalhista. Governo e oposição costuram acordo que não mexa na CLT
· 18/05/2007 - "Para entender a CLT é necessário fazer uma prospecção histórica na política do Rio Grande do Sul". Entrevista com Alfredo Bosi
· 14/08/2012 - Projeto nacional e greves do funcionalismo
· 12/01/2012 - Funcionalismo ameaça Dilma com greve geral
· 03/05/2010 - Força Sindical cobra de Dilma que política para funcionalismo seja mantida
· 29/03/2007 - Funcionalismo Público. Um dia de protestos e paralisações no RS
· 10/10/2006 - Finalistas no RS discutem economia e funcionalismo
Veja também:
· As mutações do mundo do trabalho. Desafios e perspectivas
· Biocapitalismo e trabalho. Novas formas de exploração e novas possibilidades de emancipação
· O mundo do trabalho e a crise sistêmica do capitalismo globalizado
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br

Movimentos vão repetir ações unitárias nos estados


Em Brasília, marcha com 10 mil pessoas selou articulação conjunta das organizações que atuam no campo. Documento final do encontro camponês mira contra agronegócio

23/08/2012

Pedro Rafael Ferreira,
de Brasília (DF)

   
   
Marcha reuniu 10 mil pessoas
Foto: Ruy Sposati/Cimi
Numa demonstração de força popular, os movimentos sociais do campo marcharam com 10 mil pessoas pelas ruas da capital do país, nesta quarta-feira (22), para denunciar o “esmagamento” da população rural ante o atual padrão de desenvolvimento promovido pelo Estado brasileiro. O Encontro Unitário dos Trabalhadores, Trabalhadoras e Povos do Campo, das Águas e das Florestas, que durou três dias, serviu também para selar uma articulação conjunta entre as 13 principais entidades que militam na questão agrária.
“O governo conhece bem as nossas reivindicações, mas não nos atendeu. A não resposta às nossas pautas fez com que unificássemos as ações, com forte expressão política. Para o próximo período, se desenha um cenário de grandes mobilizações nos estados”, avalia Rosângela Piovizani, do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC).
O Encontro remete ao I Congresso Nacional Camponês, organizado em 1961, no auge da atuação das Ligas Camponesas. Naquela ocasião, também foram reunidas, em Belo Horizonte (MG), as principais organizações políticas que atuavam no campo. Na avaliação dos movimentos, apesar do fortalecimento do agronegócio na última década, somente agora foi possível reunir forças para uma ação conjunta entre diferentes entidades. “O dito projeto popular do último governo deixou encantados muitos companheiros e agora esse encantamento está sendo quebrado. Está muito claro que esse governo tem lado”, acrescentou Rosângela, do MMC.

Agronegócio
O documento final do Encontro Unitário não poupa críticas ao atual modelo de desenvolvimento do meio rural, centrado no agronegócio. Ao protestarem em frente ao Palácio do Planalto, camponeses, indígenas, quilombolas, pescadores e o conjunto dos trabalhadores não esconderam a decepção com a omissão do governo. Barracas de lona preta chegaram a ser montadas na praça dos Três Poderes.
   
   
PM usou cassetetes, gás lacrimogêneo e spray de pimenta contra os
camponeses - Foto: Ruy Sposati
No entanto, ao tentarem se aproximar do Palácio do Planalto, os camponeses foram reprimidos pela Polícia Militar (PM) com cassetetes, gás lacrimogêneo e spray de pimenta.
Após o tumulto, o documento final foi levado por 13 representantes mulheres em rápida reunião com o ministro Gilberto Carvalho, titular da Secretaria Geral da Presidência da República. O objetivo não era mesmo negociar.
“Nós estamos construindo a unidade em resposta aos desafios da desigualdade na distribuição da terra. Como nos anos 60, esta desigualdade se mantém inalterada, havendo um aprofundamento dos riscos econômicos, sociais, culturais e ambientais, em consequência da especialização primária da economia”, diz um trecho do documento final.
Em outra parte, o documento sintetiza as principais contradições do setor: “este projeto, na sua essência, produz desigualdades nas relações fundiárias e sociais no meio rural, aprofunda a dependência externa e realiza uma exploração ultrapredatória da natureza. Seus protagonistas são o capital financeiro, as grandes cadeias de produção e comercialização de commodities de escala mundial, o latifúndio e o Estado brasileiro nas 
   
   Marcha encerrou o Encontro Unitário - Foto: Ruy Sposati/Cimi
suas funções financiadora – inclusive destinando recursos públicos para grandes projetos e obras de infraestrutura – e (des) reguladora da terra”.
Na avaliação feita durante os três dias de encontro, o projeto em curso no Brasil visa tão somente a “acumulação de capital especializado no setor primário, promovendo superexploração agropecuária, hidroelétrica, mineral e petroleira”. Para atender o equilíbrio das transações externas, as consequências, denunciam os movimentos, são a concentração da propriedade da terra e da renda e a perda do território. “O Estado brasileiro está vendido para o capital do agronegócio, por isso não se respeita o direito de território indígena, nem quilombola”, afirmou Denildo Rodrigues, da Coordenação Nacional dos Quilombolas (Conaq).

Publicado em: http://www.brasildefato.com.br/node/10407

domingo, 26 de agosto de 2012

Sobre Lukács e a política


José Paulo Netto - Publicado em Quinta, 03 Março 2011 01:00
José Paulo Neto
1.

Lukács jogou todo o sentido de sua vida, a partir de 1918, quando ingressou no Partido Comunista húngaro1, na elaboração de uma obra inscrita na vertente do que ele designou como marxismo ortodoxo, um marxismo visceralmente distinto do marxismo vulgar, então dominante e generalizado pela Segunda Internacional (a velha Internacional Socialista).


O marxismo ortodoxo de Lukács, na medida em que se funda numa particular articulação entre a teoria e a prática,2 implica de modo necessário uma dimensão imanentemente política no conjunto da obra construída no seu marco; como Carlos Nelson Coutinho escreveu,
[...]mesmo a grande Ontologia – ainda que, de suas 1.200 páginas, somente cerca de 40 sejam dedicadas de modo explícito à análise filosófica da práxis política – foi programaticamente concebida como um ato de intervenção política; ao buscar liberar o marxismo de suas deformações stalinistas e neopositivistas, a obra visava a contribuir para um " renascimento do marxismo", para a retomada de um autêntico socialismo no mundo.3

Entendemos que esse traço essencial vinca o complexo teórico erguido por Lukács em mais de meio século da atividade intelectual, ou seja: a sua obra filosófica e estético-crítica elaborada a partir de 1918, sem prejuízo de suas especificidades teóricas, está saturada de entonação política. Duas referências, que tomamos aqui como simples ilustrações, podem esclarecer esta determinação.

A partir da entrada dos anos 1930, quando Lukács já pensava – antes do VII Congresso da Internacional Comunista (1935), que superou intempestivamente o grave equívoco da palavra de ordem "classe contra classe" – tanto a luta antifascista quanto a estratégia de transição ao socialismo na ótica da unidade (centralizada pela classe operária) das forças populares e democráticas, a sua elaboração estética e crítica relativa ao romance revela-se fortemente enlaçada ao seu pensamento político. Quer concebendo a forma romanesca como a estrutura particular, quer recuperando o significado do realismo burguês – v.g, O romance histórico (1937), Escritos de Moscou (1933-1944)4 -, Lukács repõe, no plano teórico, as exigências da política das frentes populares. Também nos anos 1930, quando Hegel era instrumentalizado mistificadoramente pelos ideólogos do fascismo, a interpretação lukacsiana da sua obra (O jovem Hegel e os problemas da sociedade capitalista, concluído em 1938 e publicado dez anos depois) mostra-se solidária com o empenho de resgatar os conteúdos humanistas e democráticos do pensamento burguês anterior a 1848, quando a burguesia, enquanto classe, experimenta a inflexão – analisada por Lukács no áspero A destruição da razão (1954) – que a conduzirá à "decadência ideológica". Nestes dois passos, há a notar, enfaticamente que:

1) a crítica literária e filosófica lukacsiana não se reduz com essa dimensão política; se ela, sem dúvidas, impôs-lhe alguns limites, permitiu-lhe também ampliar e densificar categorias teóricas, enriquecendo o acervo analítico da forma literário-romanesca e de romancistas e o patrimônio heurístico dos estudos hegelianos;

2) o fio da concepção política lukacsiana não vulnerabilizou somente a(s) ideologia(s) burguesa(s), mas feriu também a escolástica do dogmatismo da era stalinista que instaurava – seja problematizando a utilização pragmática e rasteira do realismo socialista, seja demonstrando a inépcia da caracterização de Hegel como pensador reacionário.
Em resumo: a obra marxista de Lukács, em que pesem os giros efetuados pelo filósofo desde 1918, jamais esteve, do ponto de vista do seu conteúdo essencial, alheia à dimensão política.

Há, todavia, no conjunto dessa obra, um estrato que, indiscutivelmente, pode ser caracterizado como eminentemente político5, refigurando um processo de evolução e acúmulo que articulará a concepção política madura de Lukács. Constitui-o um elenco significativo de fontes (ensaios, conferências, artigos curtos, entrevistas) nas quais a atenção do filósofo volta-se diretamente para a problemática política em sentido estrito, enfrentando até as "questões do dia". Não se trata de um elenco textual homogêneo, e uma avaliação abrangente, fundada numa análise inclusiva desse elenco, revelaria nele pelo menos três momentos distintos.
2.

O primeiro momento abre-se com os textos elaborados por Lukács entre a proclamação da Comuna húngara (março de 1919)6 e a "ação de março" (1921) dos comunistas alemães e a sua completa derrota em 19237, período em que foi presença marcante na revista Kommunismus8 e publicou Tática e ética (sua primeira coletânea marxista, 1919) e História e consciência de classe (1923). O messianismo revolucionário de que estava imbuído o filósofo9 conduziu-o a um utopismo radical e a tomadas de posição tais que Lenin não hesitou em considerá-lo "esquerdista"; messianismo e utopismo, por outra parte, que se colavam teoricamente numa particular leitura da obra de Rosa Luxemburg.

À época, Lukács via a revolução proletária como processo imediata e universalmente em curso10 e compreendia, neste processo, o Partido Comunista – expressão mais alta da consciência de classe do proletariado, tomado este enquanto o sujeito que introduziu um sentido na história – como organizador demiúrgico da passagem da "pré-história da humanidade" ao estágio da emancipação humana.

Este momento da constituição do pensamento político de Lukács (nutrido, ainda, pelo principismo eticista próprio de um intelectual que, oriundo de família e educação aristocratizadas e aristocratizantes, renuncia conscientemente à sua origem e condição de classe e corajosamente salta para a trincheira oposta nas lutas de classes) começa a esbater-se a partir de meados dos anos 1920. O "esquerdismo" de Lukács começa a derruir-se.

Do ponto de vista ideológico, a crítica de Lenin impressionou-o profundamente – e, escrevendo um pequeno ensaio logo na sequência da morte do líder bolchevique (O pensamento de Lenin, 1924), Lukács vê-se no início de um ajuste de contas consigo mesmo para defrontar-se com o antiutopismo leniniano -, conduzindo-o a repensar as suas tomadas de posição no sentido do que chamou de "realismo revolucionário".

Por outra parte, já antes, o III Congresso da Internacional Comunista (junho-julho de 1921), de que Lukács participou, em Moscou, pressionara claramente o "esquerdismo", colocando na ordem do dia a "frente única proletária" e reconhecendo o refluxo da maré revolucionária – nas palavras de Lenin, "há que pôr fim à ideia de assalto {ao Estado burguês] e substituí-la pela ideia de assédio"11. Mas é no seu IV Congresso (Moscou, dezembro de 1922), que a Internacional Comunista consolidou a nova orientação, realçando que o mundo capitalista experimentava uma "relativa estabilidade". Foi,contudo, a prática política no interior do partido húngaro, na qual ele estará medularmente comprometido, com sua atividade dirigente, que responde pela rotação das concepções políticas de Lukács.12

Com efeito, entre a morte de Lenin e o II Congresso do Partido húngaro (1929), Lukács é um dos responsáveis pela direção do Partido, brutalmente reprimido e posto na mais dura clandestinidade pelo regime protofascita de Horthy. Na luta interna que irrompe no Partido, Lukács – Blum era seu "nome de guerra" – alinha-se com a liderança de Jeno Kun, respaldada por importantes segmentos da direção da Internacional Comunista.

A luta interna se trava com aspereza e a repentina morte de Landler13 põe Lukács à frente da oposição: cabe-lhe oferecer, no II Congresso do Partido (1929), uma alternativa à linha de Béla Kun14, o que obriga o filósofo a um estudo exaustivo das realidades húngara e internacional. Daí resulta o documento que apresenta ao Congresso, as célebres Teses de Blum, nas quais propõe, como objetivo do Partido, no combate pela derrubada da ditadura de Horthy, não uma república conselhista (tal como a Comuna húngara de 1919), porém uma ditadura democrática de operários e camponeses, cujo conteúdo imediato e concreto não ultrapassaria os quadros econômicos da sociedade burguesa15. Essa proposta, produto de um acurado estudo econômico-social e político da Hungria, expressava também a maturação política da adesão de Lukács ao comunismo, fomentada pela sua prática partidária e pelo seu melhor conhecimento das relações internacionais.

A proposta, todavia, era formulada no momento mesmo em que a Internacional Comunista, numa viragem espetacular operada no seu VI Congresso (julho-setembro 1928), substitui de fato a política da "frente única proletária" por aquela da "classe contra classe", justificando-a pela alteração da conjuntura: à "estabilidade relativa" do capitalismo sucederia um novo período (o "terceiro"), marcado pela sua "crise geral", o que repunha – segundo a interpretação da Iinternacional – a luta pela ditadura do proletariado na ordem do dia16. Em suma: Lukács operava um giro político no sentido diametralmente oposto àquele a que se dirigia a nova orientação da Internacional Comunista – de fato, a proposta lukacsiana antecipava, individual e, na realidade, solitariamente, uma plataforma que só teria guarida no movimento comunista tardiamente, após a ascensão de Hitler, somente sendo abraçada pelos comunistas depois da palavra de ordem da "frente ampla" tal como a apresentou G.Dimitrov no VII Congresso da Internacional Comunista (julho-agosto de 1935).17

O resultado não poderia ser outro: uma fragorosa derrota das Teses de Blum no congresso do Partido húngaro, que obrigou Lukács a uma autocrítica insincera (1929)18 e o recolhimento em face da atividade político-partidária. A derrota do filósofo na luta interna, porém, marcou especialmente a ruptura do próprio Lukács com suas concepções utópico-esquerdistas (ele reconheceu, explicitamente, que as Teses de Blum constituem uma "conclusão"19) e o passo ao segundo momento evolutivo do seu pensamento político.
3.

À concepção política esboçada nas malogradas Teses de Blum faltava um substrato teórico-filosófico – substrato que permitiria a Lukács assentá-la com solidez e desenvolvê-la consequentemente. É esse substrato que começa a desenhar-se entre 1930 e 1931, quando, estagiando em Moscou antes de transferir-se para a Alemanha, tem a oportunidade de estudar manuscritos ainda inéditos de Marx e Engels (que viriam à luz em 1932: os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 e A ideologia alemã) e de iniciar uma sistemática análise da obra de Lenin.

A estância de Lukács na Alemanha, entre 1931 e a chegada de Hitler ao poder, confrontando-o diretamente com a política de "classe contra classe" – dos grandes partidos comunistas, talvez tenha sido o alemão aquele que implementou mais radicalmente a orientação do VI Congresso da Internacional. Escaldado pela derrota de Blum e continuando primordialmente preocupado em não ser alijado da luta antifascista por um afastamento qualquer do movimento comunista, Lukács combate aquela política nos estreitos limites da sua atividade como crítico literário – donde os seus debates acerca do impressionismo e contra o vanguardismo sectário da esquerda alemã.20

Mas é no duro exílio na União Soviética que o seu pensamento político ingressa mesmo num segundo momento evolutivo: aí ele embasará teoricamente a concepção política que, nas Teses de Blum, se encontrava ainda em statu nascendi. Justamente nesses anos, que vão de 1933 a 1945 – mais de uma década em que se entrecruzam os horrores do fascismo, a plena instauração do stalinismo e do seu terror e a guerra –, Lukács consolidará a sua concepção política madura. Do ponto de vista teórico-filosófico, ele se apropriará intensivamente do conjunto da herança de Marx e Engels, superando os vieses que marcaram parte da sua elaboração dos anos 1920; em especial, seus estudos históricos e econômico-políticos erodem definitivamente os resíduos do seu utopismo inicial; e também o aprofundamento de sua investigação sobre a obra leniniana lhe propicia uma visão mais rica e abrangente do caráter unitário do marxismo como concepção de mundo. Cumpre assinalar que, desde então, Lenin se inscreverá no universo intelectual de Lukács com uma centralidade que vai muito além da referência teórica e política – centralidade que, desenvolvida depois de 1956, redundará na entronização de Lenin como emblema para configurar a construção do "homem novo" anunciado pelo comunismo.21

Também nesses anos estão as raízes da perspectiva teórico-filosófica do marxismo que, nos anos 1960, depurada e afinada, Lukács explorará ao limite, designando-a como ontológica e postulando-a como a única capaz de, simultaneamente, guardar a fidelidade ao espírito de Marx e assegurar o desenvolvimento crítico-criador do marxismo (nas palavras do último Lukács, "o renascimento do marxismo").

Ainda aqui, contudo, foram as duras lições da história que conduziram a reflexão política lukacsiana – de uma parte, a derrota das forças democráticas e populares em face da instauração do fascismo e, doutra, a terrível experiência do stalinismo. Se a primeira foi objeto da sua investigação e resultou numa série de ensaios publicados ao longo do período e mesmo ulteriormente, a segunda teve efeitos e impactos duradouros, porém só explicitados no pós-1956.

Lukács, exilado na União Soviética de Stalin, não se dispôs ao sacrifício físico para combater abertamente o stalinismo (o que, diga-se de passagem, não impediu que sofresse coerção direta22). A posição de Lukács torna-se compreensível se se leva em consideração a sua análise política de fundo: o filósofo, no contexto da expansão do fascismo e da Segunda Guerra Mundial, estava absolutamente convencido de que a sobrevivência da União Soviética era um valor absoluto, que condicionava tanto a vitória sobre a barbárie fascista quanto a possibilidade de evolver futuro do socialismo; por isso, mesmo que intimamente desenvolvesse uma postura crítica em face de Stalin e de seus métodos desde 1938-1939, ele não a exprimiu publicamente. Julgava, e nunca recuou desde julgamento, que fazê-lo equivalia a abrir o flanco ao inimigo.

L. Feuchtwanger, aliás objeto de notações críticas em O Romance histórico, escreveu em alhum lugar que "ser mártir é fácil; difícil, muito difícil, é permancer entre luzes e sombras pelo bem de uma ideia". Tais palavras caem como uma luva para a problemática posição assumida por Lukács: ele se recusou ao martírio e travou contra o stalisnismo, nesses anos, o combate possível, que caracterizaria como o "combate espiritual de um partisan" : defendeu, no plano estrito da cultura, ideias colidentes com a doutrina oficial23, mas sempre protegendo-se com citações protocolares de Stalin e com uma intencional restrição de seus juízos à esfera cultural.24

O fato é que os silêncios de Lukács, sua reverência formal a Stalin e a limitação da sua crítica oblíqua ao plano de cultura custaram-lhe o rótulo de "stalinista": G. Lichtheim mensiona "a resoluta adesão de Lukács a Stalin" e, de forma mais delicada, Y. Ishaghpour credita-lhe uma " adesão mais ou menos tácita ao stalinismo"; outros, como H. Rosenberg, assinalam a "sua patética resistência ao stalinismo"; na contracorrente, críticos como L. Kofler replicaram que "Lukács e o stalinismo distinguem-se entre si como o socialismo democrático distingue-se do socialismo burocrático. Entre eles não há nenhuma ponte".25

Entendemos que este último juízo está mais próximo da verdade – mas ele requer determinações para tornar-se mais exato. De uma parte, é necessário analisar em que medida a opção de Lukács impôs-lhe limitações significativas no plano de suas avaliações crítico-filosóficas e estéticas26; de outra, no que diz respeito diretamente a sua concepção política, há que investigar como também a sua opção pelo "combate espiritual de um partisan" no marco posto pela defesa do "socialismo em um só país" deixou sequelas que não podem ser ignoradas.27
4.

Lukács retorna à Hungria em 1945, depois de mais de um quarto de século de ausência forçada. Chega com a Libertação propiciada pelas vitórias do Exército Vermelho e participa ativamente do processo de reconstrução nacional, no plano cultural (torna-se membro da direção da Academia de Ciências da Hungria, leciona na Universidade de Budapeste) e no plano político (participa do Conselho Nacional da Frente Popular Patriótica).

Regressa a seu país projetando sua inserção na vida húngara a partir de duas hipóteses, intimamente vinculadas entre si: de uma parte, está convencido de que a conjuntura mundial propiciará a continuidade, sobre novos fundamentos, da "grande aliança" construída em 1941 entre as democracias ocidentais e a União Soviética, favorecendo um clima internacional de paz e desenvolvimento progressista; de outra, acredita firmemente que a reconstrução nacional deverá avançar mediante a unidade das forças democráticas e populares (daí, entre outros, seu esforço de entendimento e união entre socialdemocratas e comunistas), na construção do que sustentava ser a democracia popular ou, nos termos lukacsianos da época, a nova democracia.28

Estas duas hipóteses condensavam o que, linhas acima, designamos como sendo a sua concepção política madura, elaborada nos anos do exílio na União Soviética. De uma parte, Lukács, mesmo convencido de que capitalismo e socialismo constituíam sistemas necessariamente mundiais, compulsoriamente demandantes do espaço planetário, tinha por viável a possibilidade da coexistência dos dois sistemas sem guerras destrutivas (por isso, inclusive, em sua sincera e apaixonada participação no Movimento pela Paz, em que exerceu expressiva intervenção), o que depois de 1956 seria definido como coexistência pacífica - e que não excluía a dinâmica das lutas de classes por meios outros que não a guerra – é um dos pilares da concepção política madura de Lukács. O outro, constituiu-o a sua visão da transição ao socialismo: para Lukács, tratava-se de processo largo e complexo, que – se implicava ruptura e traumatismos no confronto com a reação e com os inimigos de classe – teria tanto mais sucesso se se operasse mediante as vias próprias do enfrentamento de ideias e cosmovisões que envolviam o conjunto da sociedade, com o recurso sistemático ao debate franco, voltado para a persuasão e o convencimento. A forte interdependência entre os dois componentes elementares dessa concepção é óbvia; um clima de paz internacional vincula-se diretamente à maior limitação possível dos caminhos revolucionários e meios que dispensem a violência físico-material; e também é óbvia a conexão dessa concepção com a "política frentista" que Lukács antecipara em 1928.29

Esta é a concepção com que Lukács regressa à Hungria e com a qual intervém ativamente, por cerca de três anos, na vida política e cultural de seu país, e, mais, na vida intelectual europeia – entre 1946 e 1949, viaja ao ocidente, participa de conferências e congressos, tem obras publicadas no país e no exterior. Mas os supostos sobre os quais repousava a sua projeção não resistem à prova de curto prazo da história: de uma parte, a Guerra Fria (e a guerra a quente, como o demonstrará na sequencia a conflagração coreana) liquida com a alternativa da coexistência sem belicismo; de outra, os aparatos de poder estatal-partidários, controlados por grupos afinados com o stalinismo (sem contar o recrudescimento da ditadura de Stalin no final desses anos), destroem no Leste Europeu as possibilidades de uma transição socialista sem o recurso à violência e ao terror.

Na Hungria, o sinal dos novos tempos é dado por Rakosi, máximo dirigente partidário e estatal: qualificando 1948 como "o ano da mudança", o ditador eliminou da vida política a pluralidade partidária e deu início à caça a seus adversários – uma repressão que atingiu tanto os não-comunistas como os opositores dos seus métodos no interior do Partido. Como notou Mészáros, o primeiro passo desta caçada foi, no verão/outono de 1949, o processo contra Rajk e sua execução; e o regime avançou, simultaneamente, contra tudo o que significava a nova democracia: desencadeou-se uma cruzada pública (e internacional: na União Soviética, por exemplo, Fadeiev reclamou "severas medidas administrativas") contra Lukács.30

A partir de 1949, uma campanha de descrédito e calúnias, orquestrada pela cúpula do Partido, é dirigida contra Lukcás: aberta formalmente, sob orientação pessoal de Rakosi, por L. Rudas em julho de 1949, será conduzida subsequentemente por um grupo de intelectuais vinculados ao aparelho partidário (dentre os quais J. Révai, M. Horváth e J. Darvas31).

O ataque a Lukács envolvia a sua intervenção como crítico literário (a pretexto de seus livros publicados em húngaro depois de 1945: Literatura e democracia e Por uma nova cultura húngara) , retomava a condenação às Teses de Blum e promovia um inquisitorial às suas ideias acerca do realismo socialista e da significação da literatura russa. Porém, o alvo cebtral dos adversários era a concepção política que – segundo eles, e corretamente – se vinculava às suas ideias acerca da cultura: a sua defesa de nova democracia. Indo diretamente ao nó do problema, no mais longo dos seus derradeiros depoimentos, Lukács relembra o que o antagonizava, nos finais dos anos 1940, com o regime Rakosi:

Na minha opinião, que remonta às Teses de Blum, a democracia popular é um socialismo que nasce da democracia. Segundo o outro ponto de vista, a democracia popular é, desde o início, uma ditadura e, desde o início, aquela forma de stalinismo para a qual ela evoluiu após o caso Tito.32

A cruzada anti-Lukács se acentua em 1950, repercutindo no movimento comunista internacional. Sob forte pressão, Lukács faz autocrítica, de novo recusando-se ao martírio33, e é obrigado, em 1951, a recolher-se à vida privada. Mais uma vez, como em 1929, a intervenção política do filósofo redunda numa derrota. Ele e suas ideias políticas deixam a cena pública – contudo, não será por muito tempo.
5.

1956 é o ano do "outubro húngaro"34. Fazendo a síntese do que se passou naquele ano, um comentarista registrou: "revolta dos intelectuais, queda do stalinista Rakosi; retorno ao poder de Imre Nágy; ressurgimento de uma imprensa livre e de partidos políticos; desmoronamento do Partido Comunista; fim da coletivização; florescimento dos conselhos operários; a revolução é esmagada pelas tropas russas".35

O comentarista não mencionou que, na explosão da crise do regime de Rakosi, também entraram na arena forças contra-revolucionárias, efetivamente reacionárias; porém, como assinalou um ex-marxista,

[...] o dilema húngaro não era entre um socialismo existente, por mais imperfeito que fosse, e a contra-revolução, e sim entre uma realidade anti-socialista e uma possibilidade socialista. A imensa maioria dos operários, estudantes e intelectuais não combateria até a morte para reinstalar capitalistas nas fábricas e sim instaurar uma democracia política que tornasse real a posse das fábricas pelos trabalhadores [...]. Diante do despertar das forças reacionárias húngaras, [...] a garantia eram os operários húngaros organizados em conselhos [...], eram também os intelectuais e estudantes, que em sua maioria ainda acreditavam no socialismo e não queriam passar de uma ditadura a outra.36

O ex-marxista tem razão: o que explode na Hungria – tendo como pano de fundo a desestalinização que fora posta em curso a partir do "relatório secreto" de Kruschev ao XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), em fevereiro de 1956 – é a demanda de profundas mudanças que levassem à realização de algo como a nova democracia que Lukács propusera no imediato pós-guerra. Por isso mesmo, o velho filósofo reingressa na cena política com entusiasmo: em junho, pronuncia no "Círculo Petöfi" a conferência A luta entre progresso e reação na cultura contemporânea e, juntamente com Tibor Déry, Giulia Illiés e István Mészáros37, lança a revista Eszmélet (Tomada de consciência). De junho a novembro, seu ativismo parece juvenil: participa do processo de refundação do partido e torna-se Ministro da Cultura do efêmero governo Nágy, cargo a que renuncia quando este propõe a retirada da Hungria do Pacto de Varsóvia.38 Na repressão que se segue ao 4 de novembro (quando as tropas russas entram em Budapeste para liquidar o levante)39, Lukács – após um breve refúgio na embaixada da Iugoslávia, que ele mesmo considerou um "erro brutal" – é deportado para a Romênia.

No ano seguinte, obtém permissão para retornar. Exige-se-lhe uma autocrítica, que ele rechaça frontalmente: "Lukács, o velho Lukács de 71 anos, recusa-se a fazer novamente sua autocrítica, a reconhecer seus erros, a submeter-se novamente à autoridade e à burocracia que se pretendem socialistas. No terceiro canto do galo, o Pedro petrificado do marxismo se recusa a renegar e a renegar-se".40 Concede-se-lhe uma espécie de otium cum dignitate, mas lhe é negado o ingresso no Partido refundado41 e se lhe impõe a proibição de suas publicações e atividades políticas, ao mesmo tempo em que nova campanha é oficialmente aberta contra ele.42

Logo afinado com os novos tempos da desestalinização, o governo de Kadar, após a "normalização" (ou seja, quando a oposição expressa em outubro de 1956 foi desarticulada), orienta-se num sentido auto-reformista: promove significativas alterações na ordem econômica e instaura um clima de tolerância política e ideológica. Em face deste novo rumo, Lukács preocupa-se fundamentalmente em apoiar as mudanças que parecem progressistas e democratizantes: definia sua postura no quadro húngaro como "não oposição, mas reforma", sublinhando que o essencial era a solução da questão básica: a questão democrática.43

Aí reside o componente inédito que enriquece a concepção política madura de Lukács e a eleva a um patamar mais alto: ainda que prosseguindo e prolongando as ideias que o conduziram à defesa da nova democracia, é legítimo afirmar que, no pós-56, o filósofo chega ao estágio culminante de sua reflexão política, configurador do terceiro momento a que aludimos: a democracia defendida por ele, e qualificada como socialista, propõe-se como a via para a reconversão das sociedades soviéticas e do leste em formações societárias compatíveis com o projeto emancipador que animou o pensamento marxiano e marxista antes da sua perversão pelo dogmatismo e pelo sectarismo.

De fato, após o XX Congresso do PCUS e seu retorno da deportação, Lukács vislumbra a concreta possibilidade de uma auto-reforma do "socialismo real" (expressão, aliás, estranha a Lukács). Avalia o período que se abre como uma transição que pode resgatar as promessas emancipadoras do Outubro vermelho de 1917, desde que se erradiquem as raízes do stalinismo e, ao mesmo tempo, mantenha-se e se aprofunde a crítica da sociedade burguesa44 – que, para ele, volta a experimentar, nos anos 1960, uma crise profunda45. No plano político, pois, trata-se de um combate em duas frentes: contra o stalinismo (que ele jamais reduziu ao clichê do "culto à personalidade") e contras as falsas alternativas oferecidas a ele (no limite, a restauração da democracia política formal burguesa).

Lukács estava firmemente convencido de que este combate em duas frentes implicava uma profunda renovação do pensamento marxista; donde o seu esforço teórico para fomentar o que chamou de renascimento do marxismo, esforço do qual são testemunhos documentais a monumental Estética (cuja primeira parte, a única concluída, sai em 1963) e a Ontologia do ser social (publicadas, a "grande ontologia", em 1976-1981, e a "pequena", em 1986), bem como o seu estímulo às pesquisas de investigadores jovens, como aqueles que ficaram conhecidos como membros da "Escola de Budapeste".46

Neste período, Lukács pôde expressar livremente o seu pensamento político47, explicitando-o claramente, sem as restrições e os compromissos a que se condicionara anteriormente. Os textos mais expressivos desta quadra são dirigidos à crítica do stalinismo e suas sequelas e põem a questão da democracia socialista na ordem do dia. E neles se expressa, reiteradamente, a aposta na auto-reforma do socialismo, sempre sinalizada pelo apoio que Lukács ofereceu à liderança soviética de Kruschev.

Esta aposta, como o desenvolvimento posterior da história demonstrou, foi perdida: as regressões do regime soviético sob Brejnev reverteram a sua possibilidade e, no fim dos anos 1980, os tardios intentos de Gorbachov comprovaram que a auto-reforma era inviável, do que derivou a insustentabilidade da experiência iniciada em 1917. Lukács, porém, não assistiu a este desfecho.

Mas há forte indicações de que ele pressentiu, com a queda de Krusckev (1965) e especialmente com a repressão à auto-reforma empreendida na Tchecoslováquia (agosto de 196848), que o projeto auto-reformador em que estava empenhado corria risco substantivo. Por isto, reagiu imediatamente à invasão da Tchecoslováquia, repudiando a intervenção das forças do Pacto de Varsóvia49 e redigindo o ensaio em que sintetiza, clara e inequivocamente, este terceiro momento da sua evolução política, em formulações que podem ser tomadas como conclusivas do seu itinerário comunista em texto que entregou à direção do seu partido e só foi publicado postumamente (1985): Demokratisierung heute um morgen, integralmente traduzido nesse volume sob o título O processo de democratização.

Neste ensaio, coligido no presente volume e em que recusa simultaneamente o modelo stalinista (e todas as suas derivações) e a democracia política de corte formal-burguês (ou suas variantes, que seduziram muitos daqueles que se opuseram ao stalinismo), Lukács põe, como única alternativa progressista às estruturas do "socialismo real", a democracia socialista, que só pode ter efetividade se se constituir como democracia da vida cotidiana; mais exatamente: "uma democracia da vida cotidiana, tal qual apareceu nos conselhos operários de 1871, 1905 e 1917 e tal qual existiu nos países socialistas e deve aí ser novamente despertada". Comentando essa passagem, nota justamente um crítico que Lukács opõe essa democracia dos conselhos operários "simultaneamente à burocracia arbitrária e à democracia burguesa, como um sistema de democracia autêntica e real, que surge cada vez que o proletariado revolucionário aparece no palco da História".50

De fato, no último Lukács, a transição socialista quase se identifica com um profundo e radical processo de democratização, a ser perseguido sem concessões se o horizonte da ação política dos comunistas for mesmo a edificação de uma sociedade sem exploração, opressão e alienação – isto é, a sociedade comunista.
6.

A concepção política que Lukács veio desenvolvendo desde a sua adesão ao comunismo não constitui o núcleo central da sua contribuição ao pensamento marxista: se, na sua obra, como salientamos, a dimensão política está sempre presente, conformando mesmo um estrato significativo da sua atividade intelectual e prático-concreta, é preciso sublinhar que ela não dispõe do privilégio de que goza em marxistas cuja atenção prioritária voltou-se para a política enquanto esfera com estatuto, legalidade e relevância específicos (como, por exemplo, em Antonio Gramsci).

Não é pertinente, nesta oportunidade, identificar as razões teóricas e/ou filosóficas deste fato. O que importa é ressaltar que, no conjunto da obra lukacsiana, a política não comparece como um objeto autônomo, passível de ser tematizado em suas peculiaridades. Em poucas palavras: há, no conjunto da obra lukacsiana, uma – insistimos – inequívoca dimensão política; mas não se pode, legitimamente, considerar a existência de algo como que um sistema de teoria política na obra lukacsiana: Lukács foi um pensador político, não um pensador da política. Esta determinação não retira da sua concepção política a importância, como tampouco minimiza a sua significação; apenas permite apontar o espaço restrito em que decorre a sua reflexão política, subordinada não a um tratamento sistemático, mas as exigências decorrentes das suas concepções teórico-filosóficas e a injunções do seu protagonismo como sujeito político.

Nos textos recolhidos neste volume, o leitor certamente notará que o espaço restrito a que nos referimos acima, determinante do arsenal de categorias com que Lukács trata os processos políticos51, tem fortes incidências na análise política lukacsiana: por exemplo, a sua crítica de princípio ao stalinismo frequentemente é viciada por uma redução teoricista – ao colocar no centro de suas apreciações, vigorosa e corretamente, a questão teórico-metodológica (em especial, o contraste das concepções stalinianas e stalinistas com as de Lenin), Lukács não apreende a referência histórico-concreta da experiência soviética (seus condicionantes econômico-sociais, a contextualidade internacional, as transformações político-ideológicas etc.) que aparece rarefeita e com pouco peso.

Deriva dessa redução teoricista um viés que pode induzir a avaliações unilaterais, pouco aptas a apreender os nexos complicadíssimos entre teoria e práxis, na suposição de que a correta imposição teórico-metodológica conduz, pela força da sua verdade, a soluções políticas adequadas. Poder-se-ia argumentar, num aprofundamento crítico que escapa ao escopo desta introdução, que a opção de fundo de Lukács – que, páginas atrás, sinalizamos como valor absoluto (a existência da União Soviética) e do qual ele nunca abriu mão – responde, centralmente, pelas limitações da análise política lukacsiana, na qual, quase sempre, predomina um otimismo não suficientemente fundado.

Enfim, esse otimismo e mais aquela redução teoricista poderiam ser responsabilizados pelas derrotas políticas que, independentemente da sua congruência teórico-metodológica e da sua coerência ideológica, Lukács protagonizou, quer ao tempo das Teses de Blum, quer no período em que batalhou pela nova democracia, quer nos anos em que emprestou seu apoio à auto-reforma que Kruschev tentou implementar.

A crítica cuidadosa e radical da concepção política de Lukács ainda está por fazer-se e o primeiro passo para conduzi-la com rigor é conhecê-la, o que reclama imperativamente o estudo dos textos como os coligidos nesse volume. E, na condução dessa crítica, há que não perder de vista o espírito geral da obra lukacsiana pós-1918: Lukács morreu afirmando que "o pior socialismo é melhor que o melhor capitalismo".52
7.

Cumpre, finalmente, lembrar ao leitor, em especial ao mais jovem, que a correta avaliação dos textos aqui reunidos supõe o conhecimento da contextualidade histórico-política no interior da qual foram elaborados por Lukács. Depois de mais de um quarto de século, que registrou uma profunda derrota político-ideológica da classe operária e das camadas trabalhadoras em todo o mundo, que assistiu ao colapso das experiências pós revolucionárias, que testemunhou o redimensionamento da dominação do capital e o descrédito das proposições socialistas – depois dessas quase três décadas de reacionarismo político e aviltamento cultural, o empenho de Lukács na renovação do socialismo e no renascimento do marxismo pode parecer algo anacrônico.

Também no que toca a Lukács, inclusive no que diz respeito à sua reflexão política, é preciso determinar "o que é vivo e o que é morto" na sua obra; porém entendemos igualmente que esta avaliação não pode excluir a temporalidade histórica em que o filósofo se moveu. Os textos aqui reunidos são historicamente determinados: trazem a marca da esperança aberta com os primeiros passos para além do stalinismo (da expectativa de um socialismo com rosto humano), da crise da ordem capitalista (a luta pelos direitos civis e a rebeldia nos campi dos Estados Unidos; o crescimento dos partidos comunistas e do movimento sindical classista na Europa Ocidental; a rebelião estudantil na França e Alemanha; a derrota do imperialismo na sua agressão ao povo do Vietnã), da quebra dos grilhões colonialistas na África etc. Então, uma cultura anticapitalista se generalizava e um pensador do nível e da audiência de Sartre afirmava com tranquilidade que "o marxismo é a filosofia do nosso tempo".

Esta temporalidade histórica esgotou-se. Mas é grosseiro equívoco supor que a história chegou ao fim: Clio, sabe-se, é uma deusa ardilosa. Reprimidas mas não suprimidas, mistificadas ideologicamente e/ou manipuladas politicamente, as lutas sociais reais prosseguem e revelam, na sua essencialidade, o condicionalismo maior das lutas de classes: metamorfoseada, a ordem do capital não perdeu suas características estruturais de exploração e opressão e continua produzindo e reproduzindo a sua negatividade. Quando esta reunir as condições para aflorar à superfície da vida social, colocar-se-á em novo patamar a questão central da transformação desta ordem societária – colocar-se-á abertamente o dilema entre uma alternativa socialista renovada e a cronificação da barbárie capitalista.

Nesta perspectiva, os textos políticos de Lukács deixam de ser importantes documentos referidos a uma conjuntura histórica passada. Adquirem uma nova significação e uma extraordinária atualidade: podem indicar, pela crítica do passado, um rumo para o futuro.
Esta é, aliás, a razão pela qual nos animamos a tornar acessíveis ao leitor brasileiro os textos que compõem o presente volume.
Recreio dos Bandeirantes, março de 2008
Notas:
1 Uma síntese bibliográfica da longa trajetória de György Lukács (1885-1971) está disponível em G. Lukács, O jovem Marx e outros escritos de filosofia, Rio de Janeiro, UFRJ, 2007, p. 15-24
2 A concepção lukacsiana do "marxismo ortodoxo" foi formulada no ensaio de abertura de História e consciência de classe (1923); releva notar que, posteriormente, ao criticar essa obra, Lukács não estendeu sua autocrítica àquela formulação, em que é central a relação entre elaboração teórica e práxis (ainda que tenha feito restrições à concepção de práxis que atravessa o conjunto do livro). Também importa observar que, em meados dos anos 1920 (1925 ou 1926), precedendo as autocríticas que realizou em relação à História e consciência de classe, Lukács redigiu um texto em que a defende das críticas que, imediatamente após a sua publicação, lhe foram dirigidas por A. M. Deborin (1881-1963) e L. Rudas (1885-1950), texto que só veio à luz postumamente (1996), sendo vertido ao inglês pouco depois – ver G. Lukács, A defense of History and class consciousness. Tailism and dialetic [Uma defesa de História e consciência de classe. Reboquismo e dialética], Londres, Verso, 2000.
3 C.N. Coutinho, "Lukács, a ontologia e a política", em R.Antunes e W.L. Rego (org.), Lukács. Um Galileu no século XX, São Paulo, Boitempo, 1996, p.23.
4 Para todas as referências bibliográficas aqui assinaladas, ver a bibliografia citada na nota 1.
5 Não casualmente, uma coleção brasileira dedicada às "fontes do pensamento político" foi inaugurada com um estudo e uma seleta de textos políticos de Lukács – trata-se do volume Lukács, preparado por Leandro Konder (Porto Alegre, L&PM, 1980)
6 Para uma aproximação à Comuna Húngara, ver, entre outros, G.D.H. Cole, Historia del pensamiento socialista, México, Fondo de Cultura Económica, 1961, v.5; Rudolf L. Tökes, Béla Kun and the Hungarian Soviet Republic, Nova York Iorque/Londres, Praeger/Pall Mall Press, 1967; Pierre Broué, História da Internacional Comunista, São Paulo, Sundermann, 2007, t.1, p. 121 e ss.
7 Para uma súmula dos eventos alemães da "ação de março" (de 1921) até à derrora comunista de 1923, ver Isabel Loureiro, A revolução alemã (1918-1923), São Paulo, Unesp, 2005; uma apreciação, de viés trotskista, encontra-se em Pierre Broué, cit., t. 1, p. 268 e ss. ; uma visão sintética e equilibrada do colapso da República de Weimar é fornecida por Peter Gay, no apêndice a seu livro A cultura de Weimar, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978.
8 Entre 1921 e 1923, Lukács também escreveu textos significativos para Rote Fahne (Bandeira vermelha), periódico do Partido Comunista alemão; tais textos, expressão das suas concepções teóricas e políticas à época, foram integralmente publicados por M. Löwy em G. Lukács, Littérature, philosophie, marxisme, Paris, PUF, 1978.
9 Acerca do messianismo do "jovem" Lukács, ver José Ignacio López Soria, De lo trágico a lo utópico. El primer Lukács, Caracas, Monte Ávila, 1978; Leandro Konder, "Rebeldia, desespero e revolução no jovem Lukács", Temas de ciências humanas, São Paulo, n. 2, 1978; Michael Löwy, Redenção e Utopia. O judaísmo libertário na Europa Central, São Paulo, Companhia das Letras, 1989; Carlos Eduardo Jordão Machado, As formas e a vida. Estética e ética no jovem Lukács (1910/1918), São Paulo, UNESP, 2004.
10 Recordando esse período, Lukács declarou, décadas depois: "Éramos todos sectários messiânicos. Acreditávamos todos na revolução mundial como num fato para acontecer amanhã" (G. Lukács, Pensamento vivido. Autobiografia em diálogo. São Paulo/Viçosa, Ad Hominem/UFV, 1999, p.77).
11 A citação é feita conforme Annie Kriegel, Las Internacionales obreras (1864-1943), Barcelona, Orbis, 1986, p.92.
12 Estudando esse período de formação do pensamento político de Lukács, Michael Löwy (A evolução política de Lukács: 1909-1929, São Paulo, Cortez, 1998, p. 234-237), numa instigante interpretação – da qual divergimos -, aponta a relevância do ensaio lukacsiano Moses Hess e o problema da dialética idealista (1926) na inflexão que, segundo sua análise, levaria à "adesão de Lukács ao termidor soviético".
13 Jeno Landler (1875-1928) desempenhou importantes funções durante a República Húngara dos Conselhos; membro do Comitê Central do Partido húngaro desde 1919, dirigiu-o durante a emigração na Áustria.
14 Ver, infra, a nota 1 do ensaio "Para além de Stalin".
15 Excertos deste documento foram publicados no Brasil: "Teses de Blum (Extrato). A ditadura democrática", Temas de ciências humanas, São Paulo, n. 7, 1980.
16 A ruptura de toda aliança com os socialdemocratas, nesta perspectiva, tornou-se inevitável, uma vez que a socialdemocracia fora identificada como "irmã gêmea do fascismo". O caráter absolutamente irrealista e suicida desta política, que contribuiu para facilitar a ascensão do fascismo na Alemanha, é flagrante na apreciação que E. Thaelmann, principal dirigente comunista alemão à época, formulava da resposta à manifestação nazista de 22 de janeiro de 1933, realizada pelas tropas de assalto diante da Karl Liebknecht Haus: "O 22 de janeiro desenvolveu-se sob o signo de uma viragem das forças de classe em favor da revolução proletária" (apud Annie Kriegel, cit., p. 111). A apreciação de Thaelmann é de 1º de fevereiro; mas, a 30 de janeiro, já Hitler fora investido por Hindenburg no cargo de chanceler...
17 Ver as intervenções de Dimitrov no referido Congresso em G. Dimitrov, Obras escolhidas em três volumes, Sófia, Sófia-Press, 1982, v. 2, p. 22-135.
18 Sobre esta autocrítica, quase quatro décadas depois Lukács esclareceu: "Quando soube de fontes confiáveis que Béla Kun preparava a minha exclusão do partido na condição de "liquidador", decidi renunciar a prosseguir a luta, pois sabia da influência de Kun na Internacional, e publiquei uma ' autocrítica'. Embora naquela época eu estivesse profundamente convencido de estar defendendo um ponto de vista correto, sabia também – pelo destino de Karl Korsch, por exemplo – que a exclusão do Partido significava a impossibilidade de participar ativamente da luta contra o fascismo iminente. Como ' bilhete de entrada' para tal atividade, redigi esta autocrítica, já que, sob tais circunstâncias, eu não podia e não queria mais trabalhar no movimento húngaro. Era evidente que esta autocrítica não podia ser levada a sério: a mudança da opinião fundamental que sustentava as teses [...] passou a ser doravante o fio condutor para minha atividade teórica e prática". Ver "Prefácio" (1967) em História e consciência de classe, São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 36-37.
19 Ibid., p. 37.
20 Quanto a isto, são emblemáticos os seus ensaios, de 1932, Tendência ou partidarismo?, Reportagem ou configuração? Observações críticas a propósito do romance de Ottwalt e Da necessidade, virtude. Esta linha de crítica terá prosseguimento nas polêmicas que envolverão, até 1938, a intelectualidade alemã exilada na União Soviética, como o comprovam as intervenções de Lukács nos periódicos Das Wort (A palavra) e Internationale Literatur (Literatura Internacional). Ver, sobre este ponto, Carlos Eduardo Jordão Machado, Um capítulo da história da modernidade estética: debate sobre o expressionismo, São Paulo, UNESP, 1998.
21 A nosso juízo, a relação do último, a relação do último Lukács com a figura de Lenin (e poder-se-ia pesquisar sua similitude com a relação do Hegel posterior a 1805 com a figura de Napoleão) está marcada por uma forte idealização do máximo dirigente bolchevique, com implicações que comprometem a análise política que o velho Lukács realiza dos rumos tomados pela revolução de outubro.
22 Em 1941, Lukács foi preso pela polícia política stalinista e só foi libertado, após alguns meses, graças aos empenhos de G. Dimitrov, então o mais alto dirigente da Internacional Comunista (ver I. Mészáros, Lukács' concept of dialetic, Londres, Merlin Press, 1972, p. 142); esta prisão é também referida por M. Löwy, A evolução política de Lukács: 1909-1929, cit., p. 244-245) e por Tibor Szabó, György Lukács. Filosofo autônomo (Nápoles, La Cittá Del Sole, 2005, p. 51), que recorda que ingualmente seu enteado (Ferenc Jánossy) esteve nos cárceres stalinistas.
23 São exemplos bastantes, ademais da obra sobre Hegel (concluída em 1938 e publicada dez anos depois) e dos textos reunidos nos Escritos dos Moscou, dentre outros, os ensaios A fisionomia intelectual dos personagens artísticos (1936), Tribuno do povo ou burocrata (1940), Progresso e reação na literatura alemã e A literatura alemã na era do imperialismo (ambos de 1944-1945, reunidos depois num volume sob o título geral de Breve história da literatura alemã).
24 Um exemplo emblemático dos procedimentos lukacsianos diante de Stalin aparece na entrada dos anos 1950. Em 20 de junho de 1950, o secretário-geral publicou, no Pravda, um longo artigo "O marxismo e os problemas da linguística" em que criticava as teses do linguista N. J. Marr. (Sobre o contexto imediato em que Stalin preparou o citado artigo, ver o cap. 10 de Z. A. Medvedev, Um Stalin desconhecido, Rio de Janeiro, Record, 2006.) Pois bem: cerca de um ano depois (29 de junho de 1951), Lukács pronunciou na Academia de Ciências da Hungria a conferência "Arte e literatura com superestrutura", na qual, após render homenagens formais ao texto de Stalin, realiza uma "interpretação" do seu pensamento que é, de fato, uma refutação das suas teses.
25 Uma larga bibliografia trata da relação entre Lukács e o stalinismo; a título meramente ilustrativo, ver George Lichtheim, "Lukács and stalinism", New Left Review, Londres, n. 91, 1975; Michael Löwy, "Lukács and stalinism", em Gareth Stedman Jones ET AL., Western marxism. A critical reader, Londres, Verso, 1978 (com modificações, este ensaio foi concluído em Michael Löwy, A evolução política de Lukács, cit.); José Paulo Netto, "Lukács e a problemática cultural da era stalinista", "Temas de ciências humanas, São Paulo, n. 6, 1979; Alberto Scarpono, "Lukács critico dello stalinismo". Critica marxista, Roma, v.17, n. 1, gennaio-febbraio 1979; Cliff Slaughter, Marxismo, ideologia e literatuta, Rio de Janeiro, Zahar, 1983, cap. 4; Eugene Lunn, Marxism and modernism. An historical study of Lukács, Brecht, Benjamin and Adorno, Bekerley, University of Califérnia press, 1982; Nicolas Tertulian, "G. Lukács e o stalinismo", Práxis, Belo Horizonte, n. 2, set. 1994); I. Mészáros, Para além do capital. Rumo a uma teoria da transição, São Paulo/Campinas, Boitempo/UNICAMP, 2002; Arpad Kadarkay, Georg Lukács. Life, thoughs and politics, Cambridge, Mass., Basil Blackwell, 1991. Num pequeno texto de Nicolas Tertulian, "Lukács hoje" (em M. O. Pinassi e Sérgio Lessa, org., Lukács e a atualidade do marxismo, São Paulo, Boitempo, 2002), também se encontram referências significativas sobre a relação aqui sinalizada.
26 Algumas apontadas em textos indicados na nota anterior e outras indicadas e diferencialmente problematizadas, por exemplo, em Marzio Vacatello, Lukács. Da Storia e coscienza di classe al giudizio sulla cultura borghese, Florença, La nuova Itália, 1968; G. H. R. Parkinson, org., Georg Lukács. El hombre, su obra, sus ideas, Barcelona, Grijalbo, 1972; Ernst Bloch ET AL., Aesthetics and politics, London, Verso, 1980; Francisco Posada, Lukács, Brecht e a situação atual do realismo socialista, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1970; Giuseppe Bedeschi, Introduzione a Lukács, Roma/Bári, Laterza, 1970; Helga Gallas, Teoria marxista de la literatura, México, Siglo XXI, 1977; Fredric Jameson, Marxismo e forma. Teorias dialéticas da literatura no século XX, São Paulo: Hucitec, 1985: George Steiner, Linguagem e silêncio: ensaios sobre a crise da palavra, São Paulo, Companhia das Letras, 1988; Terry Eagleton, A ideologia da estética, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1993; Eva L. Corredor, org., Likács after communism. Interviews with contemporary intellectuals, Durham/London, Duke University Press, 1997; Celso Frederico, Marx, Lukács: a arte na perspectiva ontológica, Natal, EDUFRN, 2005; Carlos Nelson Coutinho, Lukács, Proust e Kafka. Literatura e sociedade no século XX, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005. Críticas às concepções estéticas desenvolvidas por Lukács a partir dos anos 1930 encontram-se também em Galvano della Volpe, Crítica do gosto, Lisboa, Estampa, s.d., e em Theodor W. Adorno, Teoria estética, Lisboa, Edições 70, 1988.
27 Para além do debate frequentemente genérico e equivocado acerca do (ou não) "stalinismo político" de Lukács, neste âmbito a investigação que aqui se faz necessária ainda é muito pouco substantiva; ademais de dois dos textos citados na nota 25 – o de Löwy, cuidadoso e sério; o de Slaughter, bilioso - o ensaio de Marco Macciò, "Las posiciones teóricas y políticas Del último Lukács" (Cuadernos de pasado y presente, Códoba, n. 16, sept. 1970) e o artigo muito ruim de François Fejtö, "György Lukács et la politique" (Esprit, Paris, n. 106, oct. 1985) mostram o quanto são quase inexistentes estudos detalhados. Mesmo no que se refere à relação teórica entre as concepções gerais do último Lukács (filosóficas e políticas) e sua opção prático-política, um debate mais denso ainda não se realizou, embora já haja contribuições iniciais que merecem citação (como é o caso das contidas no livro de I. Mészáros referido na nora 25), inclusive no Brasil; vale referir as intervenções de fato colidentes, de Carlos Nelson Coutinho, no ensaio "Lukács, a ontologia e a política", cit., e de Sérgio Lessa, "Lukács: direito e política", recolhido em Maria Orlanda Pinassi e Sérgio Lessa (org.), também citado na nota 25; Sérgio Lessa, aliás, em um opúsculo mais recente (Lukács. Ética e política, Chapecó, Argos/Editora Universitária, 2007) reorienta muito problematicamente a sua análise anterior.
28 Ver "As tarefas da filosofia marxista na nova democracia", em G. Lukács, O jovem Marx e outros escritos de filosofia, cit., p. 55 e ss.
29 Lukács mesmo reconheceu esta conexão. Comentando a insinceridade da autocrítica a que se submeteu em 1929, quando da derrota das Teses de Blum, escreveu, como se via na nota 18: "Era evidente que esta autocrítica não podia ser levada a sério: a mudança da opinião fundamental que sustentava as teses [...] passou a ser doravante o fio condutor para minha atividade teórica e prática"
30 Sobre os personagens aqui referidos, ver, infra, as notas 11, 15 e 4 e do texto "Para além Stalin", O "processo" contra Lukács foi notavelmente narrado por I. Mészáros no seu artigo "El debate sobre Lukács y sus consecuencias: Révai y El zdanovismo", coligido em G. Steiner ET AL., Lukács, Buenos Aires, Jorge Alvarez, 1969; ver também M. Merlau-Ponty, As aventuras da dialética, São Paulo, Martins Fontes, 2006. Para uma reconstrução do clima do "ano da mudança", não só na Hungria, cf. Fernando Claudín, A crise do movimento comunista, São Paulo, Global, 1986, v. 2, p. 511 e ss.
31 Sobre Rudas, ver, infra, a nota 13 do texto "Para além Stalin". Joseph Révai (1898-1959), publicista, antigo companheiro de lutas de Lukács, exilado durante as duas guerras, tornou-se o principal ideólogo do regime de Rakosi, sendo ministro da Cultura de 1949 a 1953; suas acusações a Lukács encontram-se em seu livro La littérature et la démocratie populaire: à propos de Georges Lukács, Paris, La Nouvelle Critique, 1950. Joseph Darvas (1913-1973), romancista, ocupou cargos ministeriais no regime de Rakoi. Marton Horváth (1906-1987) foi membro do Comitê Central do Partido húngaro de 1944 a 1956 e, na primeira metade dos anos 1950, seu responsável por agiação e propaganda.
32 G. Lukács, Pensamento vivido, cit., p. 117. Recorde-se que, em 28 de junho de 1948, o Centro de Informação dos partidos Comunistas (Komminform) divulgou a "condenação" da direção comunista iugoslava, liderada por Tito (Josip Broz, 1892-1980).
33 Escrevendo em 1967, Lukács afirmava ser esta sua autocrítica "inteiramente formal", fato aliás denunciado por seus oponentes (J. Révai, M. Horváth): ver o seu prefácio a Arte e societá, Roma, Riuniti, 1977, v. 1, p. 19. Mas admitindo, anos depois, que fez excessivas concessões nesta autocrítica, o velho filósofo acrescentou: "Como justificação posso dizer que, se Rajk foi executado na Hungria, não se podia ter uma garantia séria de que, no caso de haver oposição, não nos poderia acontecer coisa semelhante" (Lukács, Pensamento vivido, cit., p. 117). N. Tertulian, no texto já citado na nota 25, "Lukács hoje", reproduz o comentário de Lukács a um interlocutor em 1962, referindo-se à sua atitude em face dos debates de 1949/1950: "Se naquela época eu não tivesse feito a minha autocrítica, estaria agora num túmulo sendo venerado. [...] Eu teria sido enforcado e logo em seguida reabilitado com todas as honras".
34 Sobre a insurreição húngara de 1956, ver, para interpretações muito diferenciadas, I. Mészáros, La rivolta degli intellectuali in Ungheria, Turim, Einaudi, 1958; François Fejtö, La tragédie hongroise, Paris, Pierre Horay, 1958; Tamás Aczél e Tibor Méray, The revolt of the mind: a case history of intellectual resistance behind de Iron Curtain, Londres, Thames & Hudson, 1960; Jean-Paul Sartre, O fantasma de Stalin, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967; Fernando Claudín, A oposição no "socialismo real". União Soviética, Hungria, Polônia, Tcheco-Eslováquia 1953-1980, Rio de Janeiro, Marco Zero, 1983.
35 Kostas Papaionnou, Marx et les marxistes, Paris, Flammarion, 1972, p. 17.
36 Fernando Claudín, cit., p. 163-164.
37 Tibor Déry (1894-1979), figura exponencial da literatura húngara, condenado à prisão em 1957 e anistiado em 1960. Sobre Illiés, ver, infra, nota 43 do texto Testamento político. István Mészáros (1930), discípulo de Lukács, emigrou na sequencia dos eventos de 1956, radicando-se na Inglaterra; muitas de suas obras foram publicadas no Brasil.
38 Sobre tais eventos, ver as evocações do filósofo em G. Lukács, Pensamento vivido, cit., p. 131-137, 168-169.
39 Saldo da luta: "aproximadamente 2.000 mortos e 13.000 feridos em Budapeste, 700 mortos e 1.500 feridos no resto do país. Foram encarcerados milhares de combatentes, em sua maioria operários jovens. A imprensa húngara informou, nos meses seguintes, sobre até 105 execuções" (F. Claudín, A oposição no "socialismo real", cit., p.162).
40 K. Axelos, "Prefácio" a G. Likács, Histoire et conscience de classe. Essais de dialectique marxiste, Paris, Minuit, 1965, p.3.
41 Lukács só é readmitido no Partido em 1967.
42 Parte do material dessa campanha foi publicada em português: de Béla Fogarasi (1891-1959, filósofo antes próximo a Lukács), o artigo "As concepções filosóficas de Georg Lukács" (divulgado na edição em português da revista internacional patrocinada pela União Soviética, Problemas das Paz e do Socialismo, n. 4, 1959), e de Joseph Szigeti (nascido em 1921, ex-aluno de Lukács), "Relação entre as ideias políticas e filosóficas de Lukács" (Estudos Sociais, Rio de Janeiro, n. 5, 1959). De fato, a campanha contra Lukács esgota-se na entrada dos anos 1960.
43 Ver Pensamento vivido, cit., p. 169.
44 Lukács considerava que o stalinismo, ao promover a paralisia do pensamento marxista, respondia também pela ausência de uma crítica substantiva ao capitalismo contemporâneo – crítica que deveria enfatizar o seu caráter manupilatório. Na exigência de um "renascimento do marxismo", Lukács chegava a exagerar, afirmando que a última pesquisa criativa sobre o capitalismo era o livro de Lenin sobre O imperialismo (1916) e insistia na necessidade de se escrever um O capital do século XX.
45 Ver G. Lukács, "The twin crises", New Left Review, Londres, n. 60, 1970.
46 Sobre esta "escola" (Agnes Heller, Férenc Féher, G. e M. Markus, M. Vajda), ver o prefácio de Jean-Michel Palmier a Agnes Heller, La théorie des besoins chez Marx, Paris, UGE-10/18, 1978; depois da morte de Lukács, este grupo transitou para posições teóricas e ideológicas antagônicas às de Lukács. É preciso não identificar esta "Escola de Budapeste" com o que outros estudiosos vêm designando como "escola de Lukács" : cf. Tibor Szabó, György Lukács. Filosofo autonomo, cit., p. 225-238.
47 É também o período em que suas ideias ganham crescente difusão no Ocidente, com o início da publicação de sua obra completa pela editora alemã-ocidental Luchterhand e a ampla repercussão de versões de seus textos em italiano, inglês e castelhano. Nos finais dos anos 1960, sua ativa participação na campanha internacional em defesa da comunista norte-americana Angela Davis (nascida em 1944), torna-o ainda mais conhecido.
48 Sobre os eventos na Tchecoslováquia, ver, entre outros: Roger Garaudy, La liberte em sursis: Prague, 1968, Paris, Fayard, 1968; " L'intervention em Tchecoslovaquie, pourquoi?" , Cahiers Rouge, Paris, n. 5, 1969; Pierre Broué, A primavera dos povos começa em Praga, São Paulo, Kairís, 1979; Fernando Claudín, A oposição no "socialismo real", cit.
49 M. Löwy, no texto já citado (A evolução política de Lukács, p. 252), anotou: "Jovens estudantes revolucionários da Europa Ocidental, que visitavam Lukács por volta de setembro de 1968, ficaram espantados com a severidade da sua crítica quanto à URSS e, por outro lado, seu interesse profundo pelos acontecimentos de maio na França. Lukács compreendia a relação dialética entre as duas crises, a do stalinisno e a do mundo burguês".
50 M. Löwy, cit., p.254; daí extraímos a frase de Lukács citada pouco antes.
51 É notável o fato de Lukács, reconhecendo expressamente a necessidade de análises capazes de aprender os traços contemporâneos da ordem capitalista, pensar as transformações próprias à auto-reforma do socialismo – elas igualmente contemporâneas – com as categorias leninianas, sem submetê-las a qualquer atualização e/ou crítica.
52 Afirmação que, também ela, pode prestar-se a mal-entendidos: ver os apontamentos de N. Tertulian, no artigo citado na nota 25 (p. 30-32).
[LUKÁCS, György. Socialismo e democracia: escritos políticops 1956-1971. Organização, introdução e tradução Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Neto. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008, p. 7-31]
Cronologia da vida e da obra de Lukács
1885 Nasce em Budapeste, a 13 de abril, segundo filho de Józef von Luács e Adél Wertheimer.
1902 Ingressa na Universidade de Budapeste, publica seus primeiros textos na imprensa húngara e frequenta reuniões do "Círculo de Estudantes Socialistas Revolucionários", criados por Erwin Szabó.
1904 É um dos fundadores do grupo teatral Thalia.
1906 Doutora-se em direito pela Universidade de Budapeste. Colabora com a revista progressista húngara Huszadik Század (Século XX). A leitura dos Uj Versek (Novos poemas), de Endre Ady, impressiona-o profundamente.
1908 Recebe, pelo seu texto ainda inédito História do desenvolvimento do drama moderno, o Prêmio Kristina, da Sociedade Kisfaluddy. Torna-se colaborador da revista Nyugat (Ocidente).
1909 Trava relações com Endre Ady e torna-se amigo de Béla Balázs, a cuja obra poética dedica um livro. Tem um tumultuado relacionamento amoroso com Irma Seidler, que se suicida algum tempo depois. Dedica a esta trágica experiência um ensaio intitulado "Sobre a pobreza do espírito". Doutora-se em Filosofia pela Universidade de Budapeste.
1910 Viagens à Alemanha, França e Itália. Trava relações com Georg Simmel e conhece Ernst Bloch.
1911 Publica a História do desenvolvimento do drama moderno e, também em alemão, A alma e as formas. É um dos fundadores da revista Szellem (Espírito).
1912 Vive em Florença. Por sugestão de E. Bloch, transfere-se para Heidelberg.
1913-1915 Em Heidelberg, relaciona-se com Ferdinand Tönnies, Max Weber e Emil Lask. Estuda a obra de Hegel. Trabalha numa Estética, que deixou inconclusa e só foi publicada postumamente; projeta um livro sobre Dostoiévski. Conhece sua primeira mulher, Ieliena A. Grabenko. Publica Cultura estética (1913).
1916 Publica, em revista especializada, A teoria do romance.
1917 Em Budapeste, anima o "Circulo Dominical", frequentado por Béla Fogarasi, Arnold Hauser, Karl Mannheim e Eugene Varga. Publica A relação sujeito-objeto na estética. Recebe com entusiasmo as primeiras notícias sobre a Revolução Bolchevique.
1918 Retoma o exame de Marx (que conhecia desde a preparação de História do desenvolvimento do drama moderno) e, sob a influência de E. Szabó, lê Rosa Luxemburg e Georges Sorel. Publica o ensaio "O bolchevismno como problema moral". A 2 de dezembro, ingressa no Partido Comunista.
1919 Com a queda da monarquia dos Habsburgos e a proclamação, em março, da República Soviética da Hungria, torna-se Vice-Comissário do Povo para a Cultura e a Educação Popular. Após a derrota da república, em agosto, sob a violenta repressão de Horthy, é um dos dirigentes clandestinos do Partido Comunista. Em setembro, exila-se na Áustria. Condenado à morte pelo regime de Horthy, é preso em Viena, em outubro; sua extradição é evitada graças à mobilização de intelectuais alemães. Publica Tática e ética, seu primeiro livro de inspiração marxista.
1920 Torna-se co-editor de Kommunismus (Comunismo), órgão teórico da Internacional Comunista. Casa-se com a companheira de sua vida, Gertrud Bortstieber, viúva do matemático Imre Jánossy. Sob a forma de livro, publica A teoria do romance.
1921 Na luta interna que se trava no Partido húngaro, alinha-se com a fração de Jeno Landler, opositor de Béla Kun; representando esta fração, participa, em Moscou, do III Congresso da Internacional Comunista.
1922 Aprofunda seus estudos sobre Marx e começa sistematicamente a leitura de Lenin.
1923 Publica História e consciência de classe. Estudos sobre a dialética materialista, coletãnea de textos escritos depois de sua adesão ao comunismo.
1924 História e consciência de classe recebe as primeiras críticas nas instâncias oficiais do movimento comunista. Publica Lenin: a coerência de seu pensamento.
1926 Publica Moses Hess e o problema da dialética idealista.
1928 Com a morte de J. Lander, assume a liderança da corrente anti-Béla Kun no interior do partido húngaro. Prepara documentos para o II Congresso do Partido.
1929 Clandestino, permanece três meses na Hungria, em tarefas partidárias. Apresenta, no II Congresso do Partido, as "Teses de Blum" (Blum era o seu nome na clandestinidade); derrotado e ameaçado de expulsão, faz autocrítica e afasta-se de atividades diretamente políticas por quase três décadas.
1930-1931 Vai para Moscou, onde pesquisa no Instituto Marx-Engels-Lenin, então dirigido por David Riazanov. Conhece os ainda inéditos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, de Marx. Estabelece relações com Mikgail A. Lifschitz, a quem dedicará mais tarde, "com veneração e amizade", o seu O jovem Hegel.
1931-1933 Vive semiclandestino em Berlim (sob o pseudônimo de Keller). Tem ativa intervenção na revista Die Linkskurve (Giro à esquerda), órgão da Federação de Escritores Proletários Revolucionários, vinculada ao Partido Comunista alemão. São deste período ensaios que discutem a relação entre realismo e "literatura proletária", tais como "Tendência ou partidarismo" e "Reportagem ou configuração".
1933-1940 Regressando a Moscou, desenvolve intensa atividade intelectual, de que resultam inúmeros ensaios, entre os quais: "Friedrich Engels, teórico e crítico da literatura", "Tolstoi e a evolução do realismo" e "Heinrich Heine como poetra nacional" (1935), "A fisionomia intelectual dos personagens artísticos", "A comédia humana da Rússia pré-revolucionária" e "A tragédia de Heinrich von Kleist" (1936), "O escritor e o crítico" (1939), "Tribuno do povo ou burocrata" (1940), quase todos pósteriormente coletados em livros. Torna-se membro do Instituto Filosófico da Academia de Ciências da União Soviética e do conselho editorial de várias revistas culturais. Em 1937-1938, é figura cemtral nos debates em que se envolve a intelectualidade exilada (Ernst Bloch, Bertolt Brecht e Anna Seghers), nos quais critica o expressionismo alemão e insiste na defesa de uma literatura capaz de assimilar a herança cultural do realismo crítico burguês. Começa a pesquisar as relações entre o irracionalismo filosófico e o fascismo. Publica O romance histórico, em 1937, e, um ano depois, conclui seu estudo sobre O jovem Hegel, publicado em 1948.
1941-1944 Em 1941, a polícia política stalinista o prende, sob o falso pretexto de, nos anos 1920, ter sido trotskista; é libertado graças ao empenho de seu amigo de joventude Eugene Varga (que se tornara importante economista na União Soviética) junto a Gueorgui Dimitrov, então dirigente máximo da Internacional Comunista.
1945-1949 Retorna à Hungria libertada e empenha-se na construção da nova democracia: participa do Conselho Nacional da Frente Popular Patriótica, da direção da Academia de Ciências da Hungria, assume a cátedra de Estética e Filosofia da Cultura na Universidade de Budapeste e funda a revista cultural Forum. Realiza várias viagens à Europa Ocidental, participando de encontros internacionais, seminários e colóquios. Recebe o Prêmio Kossuth e é membro fundador do Conselho Mundial da Paz. Em 1948, na Suíça, publica seu estudo sobre O jovem Hegel. No Partido e no Estato húngaros, polarizam-se posições ideológicas, com a vitória da corrente ligada a Rakosi, expressão local do dogmatismo stalinista; desta vitória resulta a execução do líder da corrente opositora, Rajk. Publica, em 1947, Goethe e seu tempo e Crise da filosofia burguesa (que, na tradução francesa parcial, terá o título de Existencialismo ou marxismo?).
1949-1951 Reflexo da vitória de Rakosi, abre-se a "questão Lukács": a intelectualidade oficial ? L. Rudas, o ex-discípulo J. Révai, M. Horwath, J. Darvas ? critica injuriosamente a sua obra. A revista Forum é fechada e a campanha contra ele se desenvilve também na União Soviética (com o romancista Alexander Fadeiev reclamando até a adoção de medidas adminstrativas). Pressionado, faz nova autocrítica ? considerada por Révai como "meramente formal" e por ele próprio, em declarações posteriores, como "cínica" ? e é obrigado a retrair-se à vida privada. Publica O realismo russo na literatura universal, Thomas Mann (1940) e Realistas alemães do século XIX (1951).
1952 Publica Balzac e o realismo francês.
1954 Publica A destruição da razão e Contribuições à história da estética.
1956 Na sequência do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, os Estados socialistas experimentam um período de efervescência política, aflorando as aspirações democráticas, particularmente fortes na Hungria. Volta à cena pública, em junho, com a conferência "A luta entre o progresso e a reação na cultura contemporânea", pronunciada no "Círculo Petöfi", e com a criação (juntamente com Tibor Déry, Gyula Illés e István Mészáros) da revista Eszmélet (Tomada de consciência). Em meio a enorme mobilização popular, o Partido húngaro entra em crise aberta e Rakosi cai. A 23 de outubro, constitui-se um novo ministério, liderado por Imre Nágy, disposto a democratizar o país, ao mesmo tempo em que se cria um comitê para a refundação do Partido; no governo Nágy, assume o Ministério da Cultura; participa da comissão encarregada de dar nova forma à organização partidária. Opõe-se à proposta de saída da Hungria do Pacto de Varsóvia, bem como ao apelo de Nágy à intervenção da ONU. A crise tem seu desfecho na brutal invasão soviética e obriga-o a asilar-se na embaixada da Iugoslávia. É deportado para a Romênia, onde permanece prisioneiro.
1957-1961 Obtém permissão para regressar a Budapeste. É-lhe exigida nova autocrítica; ante sua recusa, consuma-se a perda da cátedra universitária; não é admitido no Partido refundado e nova campanha de descrédito (iniciada por Joseph Szigéti e engrossada por Bela Fogarasi) é organizada contra ele. Em 1957, publica na Itália os Prolegômenos a uma estética marxista e A significação presente do realismo crítico. Até seu retorno ao Partido húngaro, ocorrido em 1967, sues livros deixam de ser publicados na Alemanha Oriental e passam a sê-lo na Alemanha Ocidental.
1962 A revista italiana Nuovi Argomenti divulga a sua "Carta sobre o stalinismo". Na Alemanha Ocidental, a editora Luchterhand anuncia a publicação das suas Obras completas. Conclui a primeira parte da sua Estética e anuncia sua pretensão de escrever uma Ética.
1963 Pela Luchterhand, sai a primeira parte (a única que redigiu) de sua estética, com o título Estética I: A peculiaridade do estético. Em abril, morre Gertud Bortstieber, sua mulher. Publica o ensaio "Sobre o debate entre a China e a União Soviética", onde toma posição a favor da política de paz da direção kruscheviana da União Soviética.
1964 São-lhe feitos os últimos ataques pela intelectualidade oficial húngara. Publica o ensaio "Problemas da coexistência cultural".
1966 Concede a Hans Heinz Holz, Leo Kpfler e Wolfgang Abendroth uma longa entrevista, publicada em livro, na Alemanha ocidental, sob o título Conversando com Lukács. Decide, antes de empreender a redação da Ética (projeto nunca concluído), elaborar um texto introdutório sobre a Ontologia do ser social, que se autonomizaria, adquirindo grandes dimensões e sendo publicado só postumamente. A editora Grijalbo, com sede na Espanha e no México, inicia, com a Estética I, a edição em castelhano das suas Obras completas, a qual, depois de vários volumes, restará inconclusa.
1967 Autoriza, pela primeira vez, uma reedição de História e consciência de classe, como parte do volume III de suas Werke, para o qual escreve um longo prefácio. A seu pedido, é reintegrado no Partido húngaro. Com isso, volta a possibilidade de ser publicado em seu país. Prepara uma densa antologia de seus escritos sobre arte, de 1910 até os anos 1960, publicada três anos depois em húngaro sob o título Arte e sociedade.
1968 Critica, no interior do Partido húngaro, a intervenção das tropas do Pacto de Varsóvia na Tchecoslováquia, mas evita tornar pública sua posição. Com a primeira redação da Ontologia do ser social praticamente concluída, dedica-se a um ensaio sobre a questão da democracia, que pretendia publicar na Itália, por Riuniti, editora então ligada ao Partido Comunista Italiano. Concluído o ensaio, Lukács submeteu o texto à direção do Partido húngaro, que lhe pediu que esperasse dez anos para publicá-lo. O ensaio, com o título Democratização ontem e hoje, só foi publicado no original alemão em 1985, quase quinze anos após sua redação. Conheceu depois edições em diferentes línguas (italiano, francês, inglês).
1969 Recebe o título de doctor honoris causa da Universidade de Zagreb.
1969-1970 O grupo intelectual que lhe era próximo, mas que depois romperia com sua orientação (a então chamada "escola de Budapeste": Agnes Heller, Ferenc Fehér, György Márkus e Mihály Ajda), faz uma série de críticas ao manuscrito original da Ontologia do ser social. Embora sem aceitar tais críticas, mas insatisfeito com alguns aspectos deste original, inicia a redação de um novo manuscrito para clarificar algumas de suas posições. Tal como o primeiro, também este segundo manuscrito só será publicado postumamente, com o título Prolegômenos a uma ontologia do ser social. Questões de princípio de uma ontologia hoje tornada possível. Na literatura kukacsiana, os dois manuscritos passaram a ser conhecidos, respectivamente, como "grande" e "pequena" ontologia.
1970 Recebe o título de doctor honoris causa da Universidade de Ghent e o Prêmio Goethe. Publica o livro Soljenitsin, no qual assume claramente a defesa do escritor contra os seus opositores soviéticos.
1971 A 4 de junho, em consequência de um câncer pulmonar, falece em Budapeste. Pouco antes, já consciente do caráter terminal de sua doença, escreve alguns apontamentos autobiográficos e concede uma longa entrevista a István Éorsi, na qual explicita os temas sugeridos nestes apontamentos. Estes últimos e a entrevista foram publicados, em 1980, com o título Pensamento vivido. Autobiografia em forma de diálogo.
1973 É encontrado em Heldelberg um conjunto de cerca de 1.650 cartas, parte da sua correspondência entre 1900 e 1917. Muitas delas foram publicadas mais tarde, em diferentes línguas, com o título Correspondência de juventude 1908-1917.
1974 Divulgam-se, pela primeira vez no Ocidente, alguns rensaios sobre questões de teoria literária, que redigiu em Moscou entre 1933 e 1944. Na edição francesa, tais ensaios formam um livro intitulado precisamente Escritos de Moscou.
1976-1986 Os dois volumes de Para a ontologia do ser social são publicados na Itália, respectivamente em 1976 e 1981. Somente em 1986, como volumes 13 e 14 de suas Werke, a obra aparece no original alemão, precedida da chamada "pequena Ontologia", que será também publicada em italiano em 1990. Há ainda uma edição húngara integral das duas "ontologias".
[LUKÁCS, György. O jovem Marx e outros escritos de filosofia. Organização, apresentação e tradução Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Neto. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009, p. 15-23]
Fonte: PCB.