quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Fatos e mitos dos governos progressistas no Brasil


PLÍNIO DE ARRUDA SAMPAIO JÚNIOR
QUARTA, 24 DE OUTUBRO DE 2012
A compreensão da realidade brasileira requer o esforço crítico de contrastar a aparência dos fenômenos e a forma como são interpretados pelo senso comum com a sua essência mais profunda, definida pelo sentido das transformações inscritas no
movimento histórico. Tal contraste revelará o abismo existente entre o mito de que o Brasil vive um surto de desenvolvimento, liderado por um governo de esquerda que teria criado condições para combinar crescimento, combate às desigualdades sociais e soberania nacional, e a dramática realidade de uma sociedade impotente para enfrentar as forças externas e internas que a submetem aos terríveis efeitos do desenvolvimento desigual e combinado em tempos de crise econômica do sistema capitalista mundial.
A noção de que a economia brasileira vive um momento ímpar de sua história apoia-se em diversos elementos da realidade. Afinal, após duas décadas de estagnação, entre 2003 e 2011, a renda per capita dos brasileiros cresceu à taxa média de 2,8% ao ano. Nesse período, o país manteve a inflação sob controle e, salvo a turbulência do último trimestre de 2008, no ápice da crise internacional, não sofreu nenhuma ameaça de estrangulamento cambial. Desde a segunda metade da primeira década do milênio, o volume de divisas internacionais supera o estoque de dívida externa com os bancos internacionais, configurando uma situação na qual o Brasil aparece como credor internacional, dando a impressão de que, finalmente, os problemas crônicos com as contas externas teriam sido superados. A população sentiu os efeitos da nova conjuntura de maneira bem palpável. Após décadas de demanda reprimida, o aumento da massa salarial e o acesso ao crédito provocaram uma corrida ao consumo. O governo calcula que o número de empregos gerados no período Lula – 2003-2010 – tenha ultrapassado 14 milhões. Associando grandes negócios, crescimento econômico, aumento do emprego e modernização dos padrões de consumo à noção de desenvolvimento, a nova conjuntura é apresentada como demonstração inequívoca de que o Brasil teria, finalmente, criado condições objetivas para um desenvolvimento capitalista autossustentável.
Também a ideia de que o crescimento econômico teria melhorado a desigualdade social encontra certo respaldo nos fatos. Após décadas de absoluto imobilismo, no governo Lula, o índice de Gini, que mede o grau de concentração pessoal de renda, diminuiu um pouco; e a distância entre a renda média dos 10% mais pobres e a dos os 10% mais ricos do país foi reduzida, de 53 vezes em 2002, para 39 vezes em 2010. As autoridades vangloriam-se de que, nesse período, mais de 20 milhões de brasileiros teriam deixado a pobreza. Tais fatos levaram a presidente Dilma a pavonear que o Brasil teria se transformado num país de “classe média”. Além de consequência direta da retomada do crescimento, a melhoria nos indicadores sociais é associada: à política de recuperação em 60% no valor real do salário mínimo entre 2003 e 2010 – tendência que já havia começado no governo conservador de Fernando Henrique Cardoso; à ampliação da cobertura de previdência social para os trabalhadores rurais – conquista da Constituição de 1988; e à política social do governo federal, notadamente a Bolsa Família – programa de transferência de renda para a população carente que, em 2010 atendia cerca de 13 milhões de famílias.
Por fim, o sentimento relativamente generalizado, no Brasil e no exterior, de que o país teria adquirido maior relevância no cenário internacional também se apoia em fatos concretos, tais como: o fracasso da ALCA (em parte devido à resistência do governo brasileiro); o peso do Brasil no Mercosul; o papel moderador da diplomacia brasileira nas escaramuças da América do Sul; a participação do país no restrito grupo do G-20, que reúne as principais economias do mundo a fim de pensar políticas para administrar a crise econômica mundial; a formação do foro que reúne os chamados BRICs – Brasil, Rússia, Índia e China -, que congrega as maiores economias emergentes, como suposto contraponto ao G-5 – o foro das potências imperialistas. A escolha do Brasil para sede de dois grandes megaeventos – a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016 - seria a prova material do grande prestígio do Brasil.
Por mais convincentes que os fatos enunciados pareçam, o método de ressaltar os aspectos positivos e esconder os negativos oferece uma visão parcial e distorcida da realidade. Pinçando arbitrariamente os elementos postos em evidência e ocultando os que não convém colocar à luz, a apologia da ordem distorce a compreensão do verdadeiro significado do padrão de acumulação que impulsiona a economia brasileira, suprimindo as contradições que germinam nas suas entranhas. O mito de que o Brasil estaria vivendo um surto de desenvolvimento que abriria a possibilidade de superação da pobreza e da dependência externa simplesmente ignora a fragilidade das bases que sustentam o ciclo expansivo dos últimos anos e seu efeito perverso de reforçar a dupla articulação responsável pelo caráter selvagem do capitalismo brasileiro: o controle do capital internacional sobre a economia nacional e a segregação social como base da sociedade brasileira. Alguns fatos são suficientes para deixar patente a verdadeira natureza do modelo econômico brasileiro.
O crescimento da economia brasileira entre 2003 e 2011 não foi nada de excepcional – apenas 3,6% ao ano –, bem abaixo do que seria necessário para absorver o aumento vegetativo da força de trabalho – estimado em cerca de 5% ao ano –, pouco acima do crescimento médio da economia latino-americana. A expansão foi determinada pela configuração de uma conjuntura internacional sui generis, que permitiu ao Brasil “surfar” na bolha especulativa gerada pela política de administração da crise dos governos das economias centrais. De fato, o crescimento foi puxado pelo aumento das exportações, impulsionado pela elevação dos preços das commodities, e pela relativa recuperação do mercado interno, o que só foi possível porque a abundância de liquidez internacional criou a possibilidade de uma política econômica um pouco menos restritiva. No entanto, a conjuntura mais favorável não foi aproveitada para uma recuperação dos investimentos – a base do crescimento endógeno. Nesse período, a média da taxa de investimento ficou abaixo de 17% do PIB – pouco acima da verificada nos oito anos do governo anterior e bem abaixo do patamar histórico da economia brasileira entre 1970 e 1990.
A nova rodada de modernização dos padrões de consumo somente alcançou uma restrita parcela da população e, mesmo assim, na sua maioria, com produtos supérfluos de baixíssima qualidade. Não poderia ser diferente, pois, assim como uma pessoa pobre não dispõe de condições materiais para reproduzir o gasto de uma pessoa rica, a diferença de pelo menos cinco vezes na renda per capita brasileira em relação à renda per capita das economias centrais não permite que o estilo de vida das sociedades afluentes seja generalizado para o conjunto da população. Para as camadas populares incorporadas ao mercado consumidor o custo foi altíssimo e será pago com grandes sacrifícios em algum momento no futuro. Não é necessário ser um gênio em matemática financeira para perceber que a corrida das famílias pobres às compras não é sustentável. A cobrança de taxas de juros reais verdadeiramente estratosféricas, em total assimetria com a evolução dos salários reais, implica em verdadeira servidão por dívida, caracterizada pelo crescente peso dos juros e amortizações na renda familiar. O aumento artificial da propensão a consumir das famílias é um problema macroeconômico grave. Quando a “bolha especulativa” estourar, não apenas as pressões recessivas tendem a ser potencializadas, como o crescente endividamento das famílias pobres converter-se-á numa grave crise bancária.
A subordinação do padrão de acumulação à lógica dos negócios do capital internacional tem provocado um processo de especialização regressiva da economia brasileira na divisão internacional do trabalho. A revitalização do agronegócio como força motriz do padrão de acumulação reforça o papel estratégico do latifúndio. A importância crescente do extrativismo mineral, potencializada pela descoberta de petróleo na camada do pré-sal, intensifica a exploração predatória das vantagens competitivas naturais do território brasileiro. Por fim, a falta de competitividade dinâmica (baseada em inovações) para enfrentar as economias desenvolvidas assim como a insuficiente competitividade espúria (baseada em salário baixo) para fazer face às economias asiáticas levam a um processo irreversível de desindustrialização.
A regressão nas forças produtivas vem acompanhada de progressiva perda de autonomia dos centros internos de decisão sobre o processo de acumulação. A exposição do Brasil às operações especulativas do capital internacional tem intensificado a desnacionalização da economia brasileira e aumentado de maneira assustadora a sua vulnerabilidade externa. A trajetória explosiva do passivo externo, composto pela dívida externa com bancos internacionais e pelo estoque de investimentos estrangeiros no Brasil, evidencia a absoluta falta de sustentabilidade de um padrão de financiamento do balanço de pagamentos que, para não entrar em colapso, depende da crescente entrada de capital internacional. A magnitude do problema pode ser aquilatada pela dimensão do passivo externo financeiro líquido – que contempla apenas recursos de estrangeiros de altíssima liquidez prontos para deixar o país, já descontadas as reservas cambiais –, de US$ 542 bilhões no final de 2011. Diante disso, há sempre a ameaça inescapável de que, quando o sentido do fluxo de capitais externos for invertido, tudo o que, hoje, parece sólido, amanhã, se desmanche no ar, fazendo com que, de uma hora para outra, os empregos gerados desapareçam, o número de pobres volte a crescer e o país volte a amargar draconianos programas de ajuste estrutural impostos pelos organismos financeiros internacionais.
O substrato do modelo econômico brasileiro repousa, em última instância, na crescente exploração do trabalho – a verdadeira galinha dos ovos de ouro do capitalismo brasileiro. A gritante discrepância entre os ganhos de produtividade do trabalho e a evolução dos salários põe em evidência que, mesmo numa conjuntura relativamente favorável, o progresso não beneficiou os trabalhadores. Não à toa, a propaganda oficial omite o fato de que, no final do governo Lula, o salário médio dos ocupados permanecia praticamente estagnado no mesmo nível de 1995. A perversidade do padrão de acumulação em curso fica patente quando se leva em consideração a distância de quase quatro vezes entre o salário mínimo efetivamente pago aos trabalhadores e o salário mínimo estipulado pela Constituição brasileira e calculado pelo Dieese.
Posto em perspectiva histórica, os governos progressistas aprofundaram o processo de flexibilização e precarização das relações de trabalho. Nos anos Lula, a jornada média do trabalhador brasileiro foi de 44 horas, elevação de uma hora em relação à média dos oito anos anteriores. A situação mais favorável da economia também não impediu que a rotatividade do trabalho continuasse em elevação, nem significou uma reversão da informalidade em que se encontra praticamente metade dos ocupados. O aumento do emprego também veio acompanhado de um aprofundamento do processo de deterioração da qualidade dos vínculos contratuais dos trabalhadores com as empresas, com a disseminação de formas espúrias de subcontratação. Calcula-se que 1/3 dos empregos gerados no período foram para trabalhadores terceirizados, hoje mais de 10 milhões de postos de trabalho, isto é, quase 1/5 do total dos empregados. Por fim, cabe ressaltar a complacência em relação ao trabalho infantil. No final da primeira década do século XXI, este trabalho continuou vitimando cerca de 1,4 milhão de crianças brasileiras – contingente equivalente à população de Trinidad Tobago.
A visão apologética de que os governos de Lula e Dilma estão empenhados no combate às desigualdades sociais não leva em conta a relação de causalidade – há décadas desvendada pelo pensamento crítico latino-americano – entre: mimetismo dos padrões de consumo das economias centrais, desemprego estrutural e tendência à concentração da renda - fenômenos típicos do capitalismo dependente. Na realidade, as tendências estruturais responsáveis pela perpetuação da pobreza e da desigualdade social não foram alteradas. Mesmo com a expressiva ampliação dos empregos, aproximadamente 40% da força de trabalho brasileira ainda permanece desempregada ou subempregada, isto é, sem renda de trabalho ou com trabalho que remunera menos do que um salário mínimo. Nessas condições, não surpreende que a concentração funcional da renda, que mede a divisão da renda entre salário e lucro, tenha permanecido praticamente inalterada durante o governo Lula num dos piores patamares do mundo. A pequena melhoria na distribuição pessoal da renda (que mede a repartição da massa salarial), apontada como prova cabal do processo de “inclusão” social, na realidade apenas registra uma ligeira diminuição no grau de concentração dos salários, reduzindo a distância entre a renda da mão-de-obra qualificada e da não qualificada. A persistência de um estoque de pobres da ordem de 30 milhões de brasileiros – contingente superior à população do Peru e mais de quatro vezes os habitantes de El Salvador – revela o total disparate de imaginar o Brasil um país de “classe média”, ainda mais quando se leva em consideração que o fim do ciclo expansivo fará a nova “classe média” percorrer o caminho de volta para a pobreza.
A noção de que os governos progressistas representam uma mudança qualitativa nas políticas sociais não coaduna com as prioridades manifestadas na composição dos gastos públicos. Convertidos à filosofia da política compensatória do Banco Mundial, Lula e Dilma passaram a atuar sobre os efeitos dos problemas sociais e não sobre suas causas, contentando-se em minorar o sofrimento do povo, dentro das limitadíssimas possibilidades orçamentárias de uma política macroeconômica pautada pela obsessão em preservar o ajuste fiscal permanente. A evolução na composição do gasto social do governo federal entre 1995 e 2010 comprova que não houve mudanças relevantes na política social de Lula em relação a seu antecessor. Nos principais itens de gastos, como, por exemplo, saúde, educação, a participação relativa dos gastos sociais do governo federal no PIB permaneceu praticamente inalterada. Existem duas exceções. A primeira diz respeito aos gastos com Previdência Social, cujo aumento, como já mencionamos, deve ser atribuído basicamente aos efeitos da Constituição de 1988. A segunda se refere aos programas assistenciais, que receberam um acréscimo de recursos da ordem de 1% do PIB, mais do que o dobro da proporção destinada pelo governo anterior. Mesmo assim, um volume insignificante quando comparado com os recursos transferidos aos credores da dívida pública - menos de 1/3 do superávit primário e menos de 1/6 do total das despesas do setor público com o pagamento de juros (as quais, entre 2003 e 2010, ficaram em torno de 3,24% do PIB ao ano). Na realidade, o que marca a política social da era Lula, como a de FHC e seus antecessores, diga-se de passagem, é o absoluto imobilismo para superar a enorme distância entre os recursos necessários para suprir as carências das políticas sociais e a disponibilidade efetiva de recursos para financiá-los.
Mesmo a política externa, apresentada por alguns como a frente mais ousada da administração petista, mal dissimula a subserviência aos cânones da ordem global e às exigências do império norte-americano. Na busca desesperada por novos mercados e por capitais estrangeiros, a Presidência da República foi instrumentalizada para vender o Brasil como se fosse commodities pelo mundo afora. Também foi fartamente utilizada, principalmente na América Latina e na África, como representante especial de grandes grupos empresariais, basicamente empreiteiras e bancos, em busca de novos mercados nas franjas periféricas do sistema capitalista mundial. O discreto e vacilante apoio a Hugo Chávez, a maior aproximação com Cuba, os flertes com o mundo árabe e a busca de uma relação econômica mais intensa com a Índia, a Rússia e a China respondem a interesses comerciais bem concretos e não devem gerar qualquer tipo de ilusão em relação à articulação de alternativas que signifiquem um desafio à ordem global. Nos fóruns internacionais, Lula e Dilma transformaram-se em verdadeiros paladinos do liberalismo. Suas intervenções se restringem a cobrar coerência neoliberal dos governos dos países ricos – felizmente, sem nenhuma consequência prática. Nos bastidores, a diplomacia brasileira transige em seus princípios em troca de um eventual assento no Conselho de Segurança das Nações Unidas. O caso mais vergonhoso foi o envio de tropas ao Haiti para cumprir o patético papel de gendarme do intervencionismo norte-americano, protegendo um governo ilegítimo, corrupto e violento.
Até no plano ideológico os governos Lula e Dilma permaneceram perfeitamente enquadrados no ideário do neoliberalismo. A cartilha neoliberal ganhou nova credibilidade no discurso e na prática de lideranças que tinham um passado vinculado às lutas sociais, reforçando ainda mais os valores e o padrão de sociabilidade neoliberal. Ao tomar como um fato consumado as exigências da ordem, as lideranças políticas que deveriam iniciar um processo de transformação social acabaram colaborando para reforçar a alienação do povo em relação à natureza de seus problemas – a dependência externa e a desigualdade social –, bem como às reais alternativas para a sua solução – a luta pela transformação social. Não é de estranhar o refluxo do movimento de massas e o processo de desorganização e fragmentação que atingiu, sem exceção, todas as organizações populares.
Vistas em perspectiva histórica, as semelhanças entre os governos progressistas e conservadores são muito maiores do que as diferenças. Dilma, Lula, FHC, Itamar Franco e Collor de Mello fazem parte da mesma família – o neoliberalismo -, cada um responsável por um determinado momento do ajuste do Brasil aos imperativos da ordem global. Numa sociedade sujeita a um processo de reversão neocolonial, a distância entre a esquerda e a direita da ordem é pequena porque o raio de manobra da burguesia é ínfimo. O grau de liberdade se reduz, basicamente, às seguintes opções: maior ou menor crescimento, num padrão de acumulação que não dá margem para a expansão sustentável do mercado interno; maior ou menor concentração de renda, dentro dos limites de uma sociedade marcada pela segregação social; maior ou menor participação do Estado na economia, dentro de um esquema que impede qualquer possibilidade de políticas públicas universais; maior ou menor dependência externa, dentro de um tipo de inserção na economia mundial que coloca o país a reboque do capital internacional; e, como consequência, maior ou menor repressão às lutas sociais, dentro de um regime de “democracia restrita”, sob controle absoluto de uma plutocracia que não tolera a emergência do povo como sujeito histórico - seja pelo recurso ao esmagamento, que caracteriza os governos à direita da ordem; seja pelo recurso à cooptação, como fazem os governos que se posicionam à esquerda da ordem.
Em suma, a modesta prosperidade material dos últimos anos, que levou uma parcela da população brasileira a ter acesso aos bens de consumo conspícuo de última geração, é efêmera e nociva. A euforia que alimenta a ilusão de um neodesenvolvimentismo brasileiro é insustentável. Ao solapar as bases materiais, sociais, políticas e culturais do Estado nacional, “progressistas” e “conservadores” são responsáveis, cada um à sua maneira, pelo processo de reversão neocolonial que compromete irremediavelmente a capacidade de a sociedade brasileira enfrentar suas mazelas históricas e controlar seu destino, de modo a definir o sentido, o ritmo e a intensidade do desenvolvimento em função das necessidades do povo e das possibilidades de sua economia.
Plínio de Arruda Sampaio Júnior é professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas – IE/UNICAMP e membro do conselho editorial do jornal eletrônico Correio da Cidadania – www.correiocidadania.com.br .

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Outubro ou nada


Por Mauro Iasi.

Uma família de nobres voltava a São Petersburgo com seus inúmeros filhos e malas volumosas. Havia se retirado em fevereiro para fugir dos acontecimentos trágicos que haviam derrubado o Czar e não havia acompanhado o desenvolvimento político que levara os trabalhadores ao poder em outubro. Pateticamente parada na plataforma e acostumada com um servilhismo milenar, esperava que algum carregador implorasse para levar as bagagens da família em troca de alguns míseros copeques.

Depois de esperar em vão por um bom tempo, um criado (nobres não se dignavam a falar com pobres) vai buscar informações e ouve a seguinte resposta: “agora somos livres, se quiser carregue suas malas”!

Era a grande revolução de Outubro que emergia lá de onde costuma vir as coisas dos explorados, da periferia, das sombras esquecidas sob a ofuscante aparência de riqueza das sociedades opulentas, dos cantos obscuros que o olhar hipócrita quer esquecer ou incorpora como normal. Em meio à tragédia da guerra, a barbárie em sua forma mais didática, a vida resistia e se levantava contra a fome e a morte.

A Revolução Russa marcou de forma definitiva a história do século XX em muitas áreas (ver a coletânea organizada por Milton Pinheiro, Outubro e as experiências socialistas do século XX. Salvador, Quarteto: 2010), como acontecimento político, como experiência histórica de um Estado Proletário, como base de transformações econômicas fundadas na socialização dos meios de produção, nas práticas do planejamento, como influência política direta nos rumos do movimento comunista internacional e a formação de estratégias e táticas do movimento revolucionário mundial.

Não podemos esquecer sua importância no desenvolvimento da cultura (é só pensar em Vladimir Maiakoviski na poesia e Sergei Eisenstein para o cinema), o ulterior desenvolvimento da música (Prokofiev, Straviski) e dança, das ciências (Luria, Vigotski, Bakthin, e tantos outros), o desenvolvimento técnico e científico (Sakharov, Andréi Kolmogórov, etc.). No entanto, quisera me deter numa outra dimensão.

Certos acontecimentos históricos despertam algo um pouco mais intangível que suas manifestações econômicas, políticas, culturais e técnico-científicas. A revolução russa se espalhou pelo mundo, sem internet e televisão, numa velocidade que precisa ser compreendida. Não apenas se expandiu enquanto processo revolucionário que em menos de seis meses havia saído da Europa oriental e chegado ao mar do Japão, se alastrado como fogo em palha pelo antigo império czarista, como atravessou o oceano e incendiou o coração e as esperanças dos trabalhadores das partes mais distantes do globo.

Em uma foto de grevistas em um porto nos EUA na mesma época pode se ver ao fundo uma faixa na qual se lê: “façamos como nossos irmãos russos”. No Brasil as greves operárias se alastravam até a greve geral de 1917 e a Revolução russa foi saudada pelo movimento anarco-sindicalista como expressão da revolução libertária enquanto emissários eram mandados para lá para colher informações e prestar solidariedade. Poucos anos depois, nos anos vinte, quando o caráter marxista da experiência soviética se torna evidente, distanciando-se, portanto, dos princípios anarquistas, forma-se um movimento comunista que não tem paralelo com nenhum outro por sua escala mundial, sua forma de organização e sua ação.

Partidos Comunistas são formados em toda a América Latina, assim como em quase todos os mais distantes rincões do planeta, dos EUA até a China. Evidente que a formação da União Soviética e da III Internacional Comunista explicam a iniciativa e mais, a necessidade, de uma organização internacional, mas não sua aceitação e rápido desenvolvimento. Há elementos objetivos e subjetivos que precisam ser levados em conta.

Os objetivos são por demais conhecidos e podem ser resumidos na própria internacionalização do modo de produção capitalista e sua transformação em imperialismo, mas não podemos compreender a dimensão desse fenômeno sem entender que a revolução soviética foi um evento catalisador de esperanças de todos os explorados.

Como nos dizia Marx, para que se forje uma classe revolucionária é necessário que se manifeste uma classe que se apresente como um entrave de caráter universal, ao mesmo tempo em que outra consiga expressar através de sua particularidade os contornos de uma emancipação universal. Falando da Alemanha, Marx afirmava que faltava: “grandeza de alma, que, por um momento apenas, os identificaria com a alma popular, a genialidade que instiga a força material ao poder político, a audácia revolucionária que arremessa ao adversário a frase provocadora: Nada sou e serei tudo.” (Marx, K. Crítica à filosofia do direito de Hegel. São Paulo, Boitempo: 2005. p.154). 

Não se trata de nenhum deslize idealista, mas de exata combinação de fatores que dada certas condições materiais, que sem dúvida a guerra mundial propiciava, cria uma equação na qual uma classe encontra as condições de sua fusão enquanto classe.
Imersa na cotidianidade reificadora, submetida às condições da exploração os trabalhadores vivem seu destino como uma condição inescapável. Ainda que submetidos as mesmas condições que seus companheiros, não vivem estas condições como base para uma consciência e ação comuns, mas como uma serialidade, nos termos de Sartre. A vida é assim e é impossível mudá-la.

Em certas condições, no entanto, se produz uma situação na qual a realidade se impõe de tal forma que se torna impossível manter a impossibilidade de mudá-la, nas palavras de Sartre: “A transformação tem, pois, lugar quando a impossibilidade é ela mesma impossível, ou se preferirem, quando um acontecimento sintético revela a impossibilidade de mudar como impossibilidade de viver” (Sartre, J. Crítica de la razón dialéctica. Buenos Aires: Losada, 1979, v. 2, p.14). O pensador francês tem em mente os acontecimentos da crise da monarquia absolta que levou a eclosão da Revolução Francesa, mas vemos claramente esses elementos na crise do czarismo nas condições da guerra.

Interessa-nos, no entanto, outra dimensão desse fenômeno. Da mesma forma que um acontecimento sintético pode levar à fusão da classe e a superação de sua situação de serialidade, encontrando na ação do grupo as condições para abrir a possibilidade de superar o campo prático inerte, devemos supor que uma ação particular da magnitude de um processo revolucionário como o russo, provoca um efeito sobre os trabalhadores, mesmo aqueles que não estavam envolvidos direta e presencialmente nos acontecimentos.

Ernesto Che Guevara denominava isso de “consciência da possibilidade da vitória” e inclui entre as condições objetivas que torna possível uma revolução. Quando os trabalhadores vêem os revolucionários russos varrerem seus tiranos, quebra-se a impressão de naturalização e inevitabilidade com as quais revestiam suas condições de existência. É possível mudar, nada somos, mas podemos ser tudo.

Em um belo poema soviético é descrita a cena na qual uma camponesa que agora tinha acesso aos museus e suas obras de arte se detêm diante de um quadro a admirá-lo. A autora do poema então conclui: “mal sabia que ali era uma obra de arte a admirar outra”. Operários assumem as fábricas, as terras são entregues aos comitês agrários para serem repartidas. Soldados, operários, camponeses, marinheiros, lotam os teatros antes privativos da nobreza russa, para ouvir Maiakóviski recitar os poemas que retira dos bolsos de seu enorme casaco e de seu coração ainda maior.

Suspendemos por um instante as enormes dificuldades que viriam, a guerra civil, o isolamento, a burocratização e a degeneração que culminaria no desfecho histórico de 1989. Naquele momento de maravilhoso caos, a vida fluía não como processo que aprisiona os seres humanos nas cadeias do estranhamento, mas como livre fluir de uma práxis transformadora. Tudo pode ser mudado. Podemos criar as crianças de uma nova forma, e já vemos Makarenko e seu enorme coração abrigando os órfãos da guerra e reinventando a pedagogia, trabalhadores organizando as comissões de fábrica e Alexandra Kollontai olhando o mundo com os olhos de mulheres emancipadas.

Enquanto o mundo capitalista preparava-se para esmagar a experiência revolucionária russa (a república dos trabalhadores seria atacada em 1918 por dez potências estrangeiras), o generoso coração da classe trabalhadora acolhe esta experiência como sua e a defende, sem conhecê-la profundamente, sem que a compreenda de todo, mas por que nela se reconhece.

Paz, terra, pão e sonhos voavam pelo mundo que o capital havia tornado um só e mãos calejadas, duras como a terra que trabalham, os seguram e se alimentam da esperança dos que se levantaram contra seus opressores. Corpos exauridos pela chacina diária das fábricas caminham pelas ruas e olham em frente, levantam seus punhos e cantam a canção que os unia: se nada somos em tal mundo, sejamos tudo, ó produtores!

Em tempos como os nossos, de hipocrisia deliberada, em tempos de humanidade desumanizada, de cotidianidade reificada, a consciência da possibilidade da vitória se reverte em seu contrário e se manifesta novamente como uma consciência da impossibilidade da mudança. Brecht nos alerta: nada deve parecer natural, porque nada deve parecer impossível de mudar e completa em outro poema: até quando o mundo será governado por tiranos? Até quando iremos suportá-los?

Presos à nova serialidade, fragmentados e divididos, submetidos às novas cadeias de impossibilidades, escolhendo a cada quatro anos quem irá comandar sua exploração, nossa classe nem se lembra que teve um outubro e que fizemos a terra tremer e que os poderosos perderam o sono diante da iminência de seu juízo final.

Diante da realidade do capital internacional que ameaça a humanidade, diante da barbárie diária que ameaça minha classe, gestam-se novas impossibilidades de manter os limites do possível, crises didáticas transformam em pó certezas neo e pós liberais arcaicos/modernos e suas irracionalidades racionais. O pólo da negatividade humana se reapresenta arrogante e prepotente. Muitos são os que se levantam ainda sem rumo, não importa, que se levantem e gritem, resistam e lutem. Mas, em sua marcha olhando para o futuro, resistindo contra as mazelas do presente desumano do capital, olhem por um momento para trás, vejam como já marchavam à nossa frente nossos camaradas russos, vejam como iam decididos e corajosos abrindo caminho em direção ao amanhã.

Marchemos para frente, tiremos nossa poesia do futuro, basta de anacronias e cópias do passado, mas não nos esqueçamos nunca que tivemos um Outubro, e foi nosso, e foi um grande Outubro vermelho e proletário, e foi tão grande que foi planetário, e foi tão generoso e fraterno que nele se irmanaram todos os trabalhadores do mundo e chegaram a acreditar que tudo podia mudar e, por um momento, mudaram tudo que podiam.

Viva a revolução Soviética de 1917. Outubro… ou nada!

Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, presidente da ADUFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.


segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Educação: o desenvolvimento contínuo da existência socialista


Por István Mészáros.*

O papel da educação não poderia ser maior na tarefa de assegurar uma transformação socialista plenamente sustentável. A concepção de educação aqui referida – considerada não como um período estritamente limitado da vida dos indivíduos, mas como o desenvolvimento contínuo da consciência socialista na sociedade como um todo – assinala um afastamento radical das práticas educacionais dominantes sob o capitalismo avançado. É compreendida como a extensão historicamente válida e a transformação radical dos grandes ideais educacionais defendidos no passado mais remoto. Pois esses ideais educacionais tiveram de ser não apenas minados com o passar do tempo, mas ao final, completamente extintos sob o impacto da alienação que avança cada vez mais e da sujeição do desenvolvimento cultural em sua integridade aos interesses cada vez mais restritivos da expansão do capital e da maximização do lucro.

Não apenas Paracelso no século XVI, mas também Goethe e Schiller[i] no fim do século XVIII e nas primeiras décadas do século XIX ainda acreditavam em um ideal educacional que poderia orientar e enriquecer humanamente os indivíduos ao longo de toda a sua vida. Ao contrário, a segunda metade do século XIX foi já marcada pelo triunfo do utilitarismo e o século XX capitulou sem reservas também no campo educacional às concepções mais estreitas de “racionalidade instrumental”. Quanto mais “avançada” a sociedade capitalista, mais unilateralmente centrada na produção de riqueza reificada como um fim em si mesma e na exploração das instituições educacionais em todos os níveis, desde as escolas preparatórias até as universidades – também na forma da “privatização” promovida com suposto zelo ideológico pelo Estado – para a perpetuação da sociedade de mercadorias.

Não é surpreendente, pois, que o desenvolvimento tenha caminhado de mãos dadas com a doutrinação da esmagadora maioria das pessoas com os valores da ordem social do capital como a ordem natural inalterável, racionalizada e justificada pelos ideólogos mais sofisticados do sistema em nome da “objetividade científica” e da “neutralidade de valor”. As condições reais da vida cotidiana foram plenamente dominadas pelo ethos capitalista, sujeitando os indivíduos – como uma questão de determinação estruturalmente assegurada – ao imperativo de ajustar suas aspirações de maneira conforme, ainda que não pudessem fugir à áspera situação da escravidão assalariada.

Assim, o “capitalismo avançado” pôde seguramente ordenar seus negócios de modo a limitar o período de educação institucionalizada em uns poucos anos economicamente convenientes da vida dos indivíduos e mesmo fazê-lo de maneira discriminadora/elitista. As determinações estruturais objetivas da “normalidade” da vida cotidiana capitalista realizaram com êxito o restante, a “educação” contínua das pessoas no espírito de tomar como dado o ethos social dominante, internalizando “consensualmente”, com isso, a proclamada inalterabilidade da ordem natural estabelecida. Eis porque mesmo os melhores ideais da educação moral de Kant e da educação estética de Schiller – que tinham a intenção de ser, para seus autores, os antídotos necessários e possíveis da progressiva tendência de alienação desumanizadora, contraposta pelos indivíduos moralmente preocupados em sua vida pessoal à tendência criticada – foram condenados a permanecer para sempre no reino das utopias educacionais irrealizáveis. Eles não poderiam equiparar-se sob nenhum aspecto à realidade prosaica das forças que impuseram com sucesso a todo custo o imperativo auto-expansivo fundamentalmente destrutivo do capital. Pois a tendência socioeconômica da alienação que tudo traga foi suficientemente poderosa para extinguir sem deixar rastro, até mesmo os ideais mais nobres da época do Iluminismo.

Nesse sentido, podemos ver que, embora o período de educação institucionalizada seja limitado sob o capitalismo a relativamente poucos anos da vida dos indivíduos, a dominação ideológica da sociedade prevalece por toda a sua vida, ainda que em muitos contextos essa dominação não tenha de assumir preferências doutrinárias explícitas de valor. E isso torna ainda mais pernicioso o problema do domínio ideológico do capital sobre a sociedade como um todo e, por certo, ao mesmo tempo sobre seus indivíduos convenientemente isolados. Quer os indivíduos particulares tenham ou não consciência disso, não podem sequer encontrar a mínima gota de “fundamento neutro de valor” em sua sociedade, muito embora a explícita doutrinação ideológica lhes garanta de forma enganosa o oposto, pretendendo – e convidando os indivíduos a se identificarem “autonomamente” com essa pretensão – que eles sejam plenamente soberanos em sua escolha dos valores em geral, assim como se afirma que eles são consumidores soberanos das mercadorias produzidas capitalisticamente, adquiridas com base nas escolhas soberanas nos supermercados controlados de modo cada vez mais monopolista.

Tudo isso é uma parte integrante da educação capitalista pela qual os indivíduos particulares são diariamente e por toda parte embebidos nos valores da sociedade de mercadorias, como algo lógico e natural.

Assim, a sociedade capitalista resguarda com vigor não apenas seu sistema de educação contínua, mas simultaneamente também de doutrinação permanente, mesmo quando a doutrinação que impregna tudo não parece ser o que é, por ser tratada pela ideologia vigente “consensualmente internalizada” como o sistema de crença positivo compartilhado de maneira legítima pela “sociedade livre” estabelecida e totalmente não-objetável. Ademais, o que torna as coisas ainda piores é que a educação contínua do sistema do capital tem como cerne a asserção de que a própria ordem social estabelecida não precisa de nenhuma mudança significativa. Precisa apenas de uma regulação mais exata” em suas margens, que se deve alcançar pela metodologia idealizada do “pouco a pouco”. Por conseguinte, o significado mais profundo da educação contínua da ordem estabelecida é a imposição arbitrária da crença na absoluta inalterabilidade de suas determinações estruturais fundamentais.

Uma vez que o significado real de educação, digno de seu preceito, é fazer os indivíduos viverem positivamente à altura dos desafios das condições sociais historicamente em transformação – das quais são também os produtores mesmo sob as circunstâncias mais difíceis – todo sistema de educação orientado à preservação acrítica da ordem estabelecida a todo custo só pode ser compatível com os mais pervertidos ideais e valores educacionais. Eis porque, diferentemente da época do Iluminismo, na fase ascendente das transformações capitalistas, que podia ainda produzir utopias educacionais nobres, como as concepções de Kant e Schiller anteriormente referidas, a fase decadente da história do capital, que culmina na apologia da destruição ilimitada levada a cabo pelo desenvolvimento monopolista e imperialista no século XX e sua extensão no século XXI, teve de trazer consigo uma crise educacional antes inconcebível, ao lado do culto mais agressivo e cínico do contravalor. Este último inclui em nosso tempo as pretensões de supremacia racista, a horrenda presunção do “direito moral de usar armas nucleares por prevenção e antecipação”, mesmo contra países que jamais tiveram armas nucleares, e a justificação mais hipócrita do imperialismo liberal supostamente mais “humano”, ainda que inevitavelmente destrutivo. Diz-se que esse novo imperialismo é correto e apropriado para nossas condições pós-modernas: uma teoria vestida, em sua busca por respeitabilidade intelectual, com o esquematismo grotesco da pré-modernidade, modernidade, pós-modernidade, depois do colapso ignominioso do imperialismo. Eis a concepção que vemos defender-se hoje, com toda a seriedade, pelos mandarins indicados e realizadores políticos do próprio capital, projetada como a estratégia necessária a ser imposta sobre os “Estados fracassados” peremptoriamente decretados como tal e sobre o chamado “Eixo do Mal”.

Essas idéias têm o intuito de ser princípios e valores orientadores estratégicos apropriados às nossas condições históricas. São designadas para estabelecer os parâmetros gerais no interior dos quais os indivíduos devem agora ser educados, de modo a possibilitar que os Estados capitalistas dominantes vençam a “luta ideológica” – um conceito repentinamente propagandeado em termos positivos com grande freqüência, em agudo contraste com os mitos felizes e liberais do “fim da ideologia” e do “fim da história” pregados e generosamente promovidos há pouco tempo – sinônima da “guerra contra o terror”. Assim, é difícil até mesmo imaginar uma degradação mais completa dos ideais educacionais, comparada ao passado mais distante do capital, do que hoje confrontamos ativamente. E tudo isso é promovido em nosso tempo, com todos os meios à disposição do sistema, em nome da “democracia e liberdade”: palavras que condimentam em abundância os discursos de presidentes e primeiros-ministros. Nada poderia dispor com mais clareza a natureza pervertida da falsa consciência capitalista, plenamente complementada pela doutrinação ubíqua exercida de modo mais ou menos espontâneo sobre os indivíduos em sua vida cotidiana, pela sociedade de mercadorias.
* Trecho do livro O desafio e o fardo do tempo histórico, publicado como apêndice de A educação para além do capital.
István Mészáros é autor de extensa obra, ganhador de prêmios como o Attila József, em 1951, o Deutscher Memorial Prize, em 1970, e o Premio Libertador al Pensamiento Crítico, em 2008, István Mészáros se afirma como um dos mais importantes pensadores da atualidade. Nasceu no ano de 1930, em Budapeste, Hungria, onde se graduou em filosofia e tornou-se discípulo de György Lukács no Instituto de Estética. Deixou o Leste Europeu após o levante de outubro de 1956 e exilou-se na Itália. Ministrou aulas em diversas universidades, na Europa e na América Latina e recebeu o título de Professor Emérito de Filosofia pela Universidade de Sussex em 1991. Entre seus livros, destacam-se Para além do capital – rumo a uma teoria da transição (2002), O desafio e o fardo do tempo histórico (2007) e A crise estrutural do capital (2009) e A obra de Sartre, todos publicados pela Boitempo. 

[i] Ver capítulo 8 (“A educação para além do capital”) de O desafio e o fardo do tempo histórico e o capítulo 10 (“A alienação e a crise da educação”) de A teoria da alienação em Marx, cit., p. 263-82.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

'Os pais conversam menos com os filhos do que a publicidade', alerta educadora

Segundo especialistas, para enfrentar o sedentarismo e consumismo infantil os pais devem dialogar mais e brincar com os filhos (Foto: Letícia Duarte/Flickr)         

São Paulo – Em plena semana da Criança – quando o comércio deve registrar nova alta nas vendas de brinquedos e outros produtos infantis – especialistas do Instituto Alana e da Aliança pela Infância reuniram-se ontem (9) em São Paulo para discutir os prejuízos trazidos pela publicidade dirigida às crianças e a importância do resgate do brincar como estratégia de enfrentamento.

“Os pais conversam menos com os filhos do que a publicidade. Estudos mostram que a criança brasileira é a que mais assiste TV entre as de todos os países. Diante da TV a criança é estimulada a comprar o tempo todo”, alertou a pedagoga Roberta Capezzuto, integrante do Núcleo de Educação do Instituto Alana, organização que defende o desenvolvimento saudável da criança em todos os aspectos. "E é muito fácil vender para crianças porque elas acreditam em tudo o que se diz.”

Segundo ela, a situação é preocupante. Pesquisas mostram que 30 segundos de exposição a uma propaganda é suficiente para que a criança seja influenciada por uma marca. Isso é muito preocupante porque estimula um consumismo prejudicial à infância e seus familiares. 

“Há prejuízos para o desenvolvimento físico e cognitivo das crianças uma vez que elas deixam de brincar para ficar na frente da TV por horas seguidas.” O resultado imediato da combinação sedentarismo e consumo de alimentos anunciados – 80% deles são calóricos, conforme pesquisas – é a obesidade na infância. Dados do Ministério da Saúde mostram que 33% das crianças brasileiras estão com sobrepeso. 

“Outro problema é a erotização precoce. Não é à toa que a primeira relação sexual aos 15 anos vem aumentando em todo o Brasil”, disse Roberta. Isso tudo sem contar o estresse familiar causado por chantagens dos filhos que, seduzidos pela publicidade, pressionam os pais para comprar os produtos anunciados durante a programação infantil, com linguagem acessiva e com apelos visuais. E o danos psicológicos são trazidos por comerciais que exibem a falsa ideia de famílias sempre perfeitas, quando na realidade todas as famílias enfrentam problemas em vários momentos. “Será justo culpar os pais pelo consumismo excessivo quando há uma indústria milionária por trás dessa pressão que vitimiza a criança?”, questionou. 

"Existem iniciativas para restringir a publicidade destinada ao público infantil. Mas todas sofrem ataques dos meios de comunicação, que argumentam que essas propostas ferem a liberdade de expressão", disse o jornalista Alex Criado, da coordenação da Aliança pela Infância. "Essa defesa da liberdade de expressão, no entanto, esconde interesses escusos."

Entre eles está o Projeto de Lei 193/2008, do deputado Rui Falcão (PT), que está pronto para ir ao plenário da Assembleia Legislativa de São Paulo. A proposta regulamenta a publicidade, no rádio e TV, de alimentos dirigida ao público infantil. O PL proíbe no estado a publicidade dirigida a crianças de alimentos e bebidas pobres em nutrientes e com alto teor de açúcar, gorduras saturadas ou sódio entre as 6h e 21h. A proibição vale também para divulgação desses produtos em escolas públicas e privadas. A proposta veta ainda a participação de celebridades ou personagens infantis na comercialização e a inclusão de brindes promocionais, brinquedos ou itens colecionáveis associados à compra do produto. Já a publicidade durante o horário permitido deverá vir seguida de advertência pública sobre os males causados pela obesidade. 

O projeto está de acordo com o que prevê o artigo 37 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), que proíbe qualquer publicidade enganosa ou abusiva que se aproveite da deficiência de julgamento e experiência das crianças. Em 2010, o Instituto Alana denunciou ao Procon a rede Mc Donald's por vincular brinquedos às promoções de seus produtos. Conforme a denúncia, a associação de brinquedos com alimentos incentiva a formação de valores distorcidos, bem como a formação de hábitos alimentares prejudiciais à saúde.

Além de criação de leis para proteger as crianças dos efeitos nocivos da publicidade, Roberta defende a ação conjunta de famílias, escolas, movimentos sociais, ONGs, empresariado e o estado. Em sua apresentação, ela mostrou o filme Criança, a alma do négócio, que mostra depoimentos de crianças, pais, professores e especialistas sobre consumismo e a vulnerabilidade das crianças à propaganda. Produzido em 2008, o filme continua atual. 

"Leis que defendem as crianças dos efeitos nocivos da publicidade existem, como a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente e o próprio Código de Defesa do Consumidor. Basta que sejam cumpridos", disse Roberta.

Em 28 países há restrição à publicidade voltada para crianças. Suécia e Noruega baniram a publicidade.

Brincadeiras de verdade

“O encurtamento da infância – as crianças estão deixando de brincar mais cedo e essa precocidade a transforma em consumidores – é uma questão que merece muita reflexão”, disse a educadora Adriana Friedmann, coordenadora da Aliança pela Infância. A entidade mantém 20 núcleos espalhados pelo país para pesquisar e disseminar a importância do brincar. 

Segundo ela, consumo não combina com infância. "Quando uma criança pede um brinquedo, é porque está angustiada. É como se ela dissesse: olha pra mim. Elas não sabem, mas estão dizendo isso."

Para Adriana, estão faltando coisas simples e essenciais nos relacionamentos familiares, como o preparo de uma comida com afeto, mais tempo para o diálogo e brincadeiras. "Precisamos organizar nosso tempo, pegar a criança no colo, contar uma história, cantar uma música – isso é brincar também. Hoje em dia, o maior presente que podemos dar a uma criança é estar com ela por inteiro.”

Adriana lembrou que o brincar mais livre, sem brinquedos estruturados, com a criatividade do faz-de-conta era comum até os anos 1950, 1960. De lá para cá os brinquedos foram sendo introduzidos e hoje as crianças – e adultos – são cada vez mais dependentes de aparatos tecnológicos, os brinquedos atuais. “A nossa sociedade está doente, hipnotizada pela tecnologia. As pessoas estão o tempo todo desconectadas da realidade, da pessoa ao lado, daquilo que é essencial nas relações sadias, e fixadas em aparelhos como o celular. Compramos para nós e para nossos filhos”, lamentou. 

Segundo Adriana, são muitas as questões para as quais não existem respostas prontas. “Precisamos olhar para dentro de nós mesmos, voltar à nossa infância, negociar com as crianças e dar a elas alternativas que ainda não conhecem, ensinar brincadeiras antigas e brincar mais com elas."

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Ressaca eleitoral e flexibilização trabalhista


Gostaria de chamar a atenção para um projeto em particular: o chamado “Acordo Coletivo de Trabalho com Propósito Específico”. O nome parece pomposo, mas o conteúdo é nitroglicerina pura: flexibilização dos direitos previstos na Consolidação das Leis do Trabalho, a nossa CLT.
Paulo Kliass

A cada dois anos, o mês de outubro tende a ser dominado pela pauta e pela disputa política em torno das eleições. Até aí, tudo normal, faz parte das regras e da dinâmica do jogo democrático. E quando o pleito se refere à renovação dos cargos no plano municipal (prefeitos e vereadores), a agenda política nacional tende a ficar um pouco mais amortecida. Por mais que haja uma ou outra tentativa de “nacionalizar” o debate, o fato é que os assuntos do legislativo federal ficam no aguardo do início do mês de novembro. Isso porque tanto o Senado quanto a Câmara dos Deputados entram em uma espécie de “recesso branco”, uma vez que os parlamentares estão quase todos envolvidos com as candidaturas em suas bases pelo País afora.


Os problemas podem surgir após o término das eleições, quando a retomada da agenda acumulada coloca em risco a votação de temas sensíveis e polêmicos num ritmo de atropelo legislativo. É o caso da votação do Código Florestal e os retrocessos que podem ser introduzidos na legislação ambiental, caso o Executivo não assuma a iniciativa firme e decidida de se contrapor aos interesses da bancada ruralista. E um outro conjunto de itens volta à superfície, embalados pela surpreendente disposição governamental em avançar na perigosa seara da desregulamentação dos direitos dos trabalhadores e dos aposentados.

Flexibilização da CLT: origem no ABC

A validade do famigerado “fator previdenciário” continua inabalável, com a manutenção dessa metodologia perversa de redução dos valores mensais pagos aos aposentados e pensionistas. A desoneração da folha de pagamentos deixou de ser uma experiência localizada em alguns poucos setores da economia e torna-se a cada instante mais generalizada, comprometendo perigosamente a base de financiamento de nosso sistema de previdência social. Finalmente, gostaria de chamar a atenção para um projeto em particular: o chamado “Acordo Coletivo de Trabalho com Propósito Específico”. O nome parece pomposo, mas o conteúdo é nitroglicerina pura: flexibilização dos direitos previstos na Consolidação das Leis do Trabalho, a nossa CLT.


O que mais impressiona é que o Ante Projeto de Lei para a implementação de tal estratégia seja assinado por um conjunto de sindicatos de metalúrgicos do Estado de São Paulo, liderados pelo Sindicato do ABC e com o patrocínio explícito da CUT. O documento já foi protocolado oficialmente junto à Presidência da República e há quem pretenda iniciar rapidamente sua tramitação no âmbito do Congresso Nacional.


Há décadas que o empresariado e os representantes do capital têm buscado, de todas as formas, eliminar de nossa legislação as garantias mínimas de direitos dos trabalhadores, tais como 13º salário, férias remuneradas, FGTS, adicional de hora-extra, jornada de trabalho regulamentada, licença gestante, regras de saúde e segurança no trabalho, entre tantos outros itens. Tudo isso em nome de apagar a era Vargas da memória coletiva da Nação, com o intuito enganador de promover a redução do chamado “custo Brasil”. Todos esses direitos são garantidos, a duras penas, pela legislação trabalhista, capitaneada pela CLT. Por mais antigo que seja esse código, o fato é que ele ainda serve para assegurar direitos mínimos dos trabalhadores, a corda mais frágil numa sociedade que há muito tempo é marcada pela desigualdade e pela exploração dos despossuídos. Felizmente, a articulação do movimento sindical, dos setores progressistas da sociedade e das próprias entidades atuantes na área da justiça trabalhista sempre esteve atenta às iniciativas de mudanças retrógradas, em geral no sentido de retirar tais direitos.

Anteprojeto da CUT: risco de retrocesso

Um dos casos mais simbólicos e mais recentes foi justamente a tentativa de aprovação de um texto em 2001, durante o mandato do Presidente Fernando Henrique. A tristemente famosa Medida Provisória nº 5.483, que abria o caminho para a flexibilização total desses direitos, por meio de um sutil caminho - a farsa da chamada “negociação direta” entre empresas e sindicatos. Nessa época, há mais de 10 anos atrás, o PT, a CUT e demais entidades patrocinaram um amplo movimento que obrigou o governo a recuar e aquela tentativa de intervenção neoliberal no campo trabalhista acabou fracassando.


Quis a ironia da História que o movimento de quebra da espinha dorsal dos direitos dos assalariados voltasse à pauta política pelas mãos daqueles que haviam justamente combatido a tentativa de promover o retrocesso na legislação. A proposta é polêmica e tem recebido muitas críticas. O Procurador do Trabalho Rafael de Araújo Gomes elaborou um texto esclarecedor, bastante minucioso, em que analisa o histórico e as conseqüências do tal ante projeto. O risco das perdas a serem impostas ao movimento sindical superam em muito as eventuais vantagens localizadas, que independem de tal mudança na lei. Para esses setores ditos mais “modernos” do mundo industrial, as mudanças no texto da lei não são nem necessárias, pois elas já ocorrem na prática.


É importante frisar que o desejo de alteração nas regras da CLT atende aos interesses de uma parcela bastante reduzida da classe trabalhadora brasileira. O caso dos metalúrgicos do ABC é bem sintomático dessa postura. Trata-se de uma categoria mais bem organizada, trabalhando em grandes indústrias e com uma importante história de mobilização e de luta sindicais. A existência de comissões de fábricas e acordos negociados diretamente com as empresas é uma prática antiga. Como esses instrumentos contêm cláusulas mais avançadas do que as previstas na legislação trabalhista, favorecem a falsa sensação de que a CLT seria um empecilho às lutas dos assalariados. Nada mais enganoso.


Assim, o fato dessa pequena amostra do universo dos trabalhadores normalmente conseguir avanços nas suas negociações com os representantes do empresariado não permite uma generalização para o conjunto do movimento sindical. Muito pelo contrário. A previsão do Ante Projeto é que os acordos coletivos tenham validade jurídica plena e superior à CLT, mesmo em situações onde haja conflito jurídico com as disposições previstas no código trabalhista. Isso significa abrir uma perigosa brecha na legislação, que não necessariamente implica em melhorias para o conjunto dos assalariados. A história recente apresenta um caso sintomático. Em 1994 foi promovida uma alteração na legislação pela Lei 8949, com a intenção de favorecer e estimular a formação de cooperativas de mão de obra para setores como vigilância, limpeza, alimentação, transportes e outros. Feita a cunha e introduzida a exceção no texto da lei, as mudanças terminaram por reforçar a exploração da força de trabalho, com a “legalização” de situações que antes seriam consideradas irregulares e sujeitas a fiscalização e multa.


A estratégia foi imediata: grupos empresariais sentiram a chamada janela de oportunidade e constituíram cooperativas de fachada. Bingo! Os trabalhadores passaram a receber o carimbo de “cooperativados”, mas sem nenhum poder de decisão no interior da associação para a qual trabalham. As cooperativas têm seus “donos”, assim como as demais empresas. Mas podem descumprir um conjunto amplo de exigências trabalhistas, pois a mudança na lei permitiu tal excepcionalidade. Um verdadeiro tiro no pé do movimento sindical e nos direitos dos trabalhadores.

Manter a CLT e avançar nas demais conquistas

A intenção do Ante Projeto é louvável. No dizer da exposição que acompanha o documento:

“A idéia do projeto nasceu do desejo de estimular que o País adote a negociação coletiva como instrumento mais moderno para a solução dos conflitos pertinentes às relações de trabalho e à representação sindical no interior da fábrica, como condição fundamental à democratização das relações entre trabalhadores e empresas.”


No entanto, o equívoco é partir do pressuposto de que a maior parte dos trabalhadores em nosso País encontre-se em situação análoga ou similar ao grupo dos metalúrgicos do ABC. O caminho ainda é longo para que as outras categorias e nas regiões obtenham os avanços necessários nas relações trabalhistas. Trata-se de implantar e consolidar as comissões de fábrica ou comitês de empresa, buscando a negociação no local de trabalho. Porém, abrir a exceção com mudanças na CLT para a absoluta maioria ainda desamparada, em nome de uma minoria já consolidada, representa um risco e uma irresponsabilidade injustificáveis.


Assim, é necessário que o conjunto dos atores políticos afetados por tal proposta de flexibilização dos direitos trabalhistas estejam atentos e vigilantes. A ressaca eleitoral oferece uma conjuntura em que as entidades e associações por vezes sentem-se anestesiadas pelo clima político geral e acabam deixando passar medidas que podem trazer conseqüências negativas para os próprios trabalhadores.

Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Eric Hobsbawm: historiador rebelde


Por Michael Löwy.

Eric Hobsbawm, que tive a chance de conhecer pessoalmente, é não só um dos maiores historiadores do século 20, mas também um pensador que nunca renunciou à sua adesão ao marxismo e aos ideais da Revolução de Outubro. Sua obra mais conhecida é a tetralogia que vai da Era das Revoluções à Era dos Extremos. Mas eu gostaria de ressaltar um outro aspecto de sua obra, talvez menos conhecido, mas que constitui, a meu ver, sua contribuição mais original e inovadora à uma historiografia subversiva.

Se tratam de três obras dos anos 1959-69 dedicadas às chamadas formas arcaicas de revolta: Rebeldes Primitivos (1959), Os Bandidos (1969) e Capitão Swing (1969). Sua aproximação se distingue de maneira evidente da vulgata “progressista”, por seu interesse, sua simpatia, inclusive sua fascinação – estes são seus próprios termos – com os movimentos “primitivos” de resistência e protesto antimoderno (anticapitalista) dos camponeses.

Esta atitude – por sua vez metodológica, ética e política – implica um distanciamento a respeito de certa historiografia, que tende – a propósito do que ele denuncia como um viés racionalista e “modernista” – a descuidar estes movimentos, considerando-os como sobrevivências estranhas ou fenômenos marginais. No entanto, insiste Hobsbawm, estas populações “primitivas”, particularmente rurais, são todavia agora – isto é, nos anos 50 – a grande maioria da nação na maior parte dos países do mundo. Ademais, e essa é a argumentação decisiva para o historiador, “sua aquisição de consciência política é a que há feito de nosso século o mais revolucionário da história”. Em outros termos, este tipo de movimento, longe de ser marginal, é a fonte ou a raiz das grandes transformações revolucionárias do século XX, nas quais os camponeses e as massas pobres do campo jogaram um papel decisivo: a revolução mexicana de 1911-19, a revolução russa de 1917, a revolução espanhola de 1936, a revolução chinesa e a revolução cubana. A ideia é simplesmente sugerida por Hobsbawm, que não se ocupa diretamente de nenhum destes acontecimentos, senão que constitui um espécie de pano de fundo em suas investigações sobre os “primitivos”.

Para compreender estas revoltas, Hobsbawm observa que é necessário partir da comprovação de que a modernização, a irrupção do capitalismo nas sociedades camponesas tradicionais, a introdução do liberalismo econômico e das relações sociais modernas, significa para aquelas uma verdadeira catástrofe, um autêntico cataclisma social. As revoltas camponesas de massa contra esta nova ordem, vivida como insuportavelmente injusta, são frequentemente inspiradas por uma esperança revolucionaria milenarista, como no caso do anarquismo rural na Andaluzia e das Ligas Camponesas da Sicília, – de inspiração socialista religiosa – os dois surgidos em fins do século XIX com prolongações no XX. O tema é de grande atualidade no Brasil de hoje…

terça-feira, 9 de outubro de 2012

O MARXISMO DE CHE


O MARXISMO DE CHE[1]
Michael Löwy[2]

Che não foi apenas um heroico guerrilheiro, um lutador que entregou sua vida pela libertação dos povos da América Latina, um dirigente revolucionário que fez algo sem precedentes na história; deixou todos seus cargos para retomar o fuzil contra o imperialismo. Ele foi também um pensador, um homem de reflexão que nunca deixou de ler e escrever, aproveitando qualquer pausa entra duas batalhas para ter à mão caneta e papel. O seu pensamento faz dele um dos mais importantes renovadores do marxismo na América Latina, talvez o mais importante desde José Carlos Mariátegui.

Curiosamente, a maioria das biografias sobre o Che recentemente publicadas não tratam deste aspecto essencial de sua personalidade. Até os autores simpáticos à sua figura não compreendem ou menosprezam sua obra marxista. Por exemplo, no belo livro de Paco Ignacio Taibo II [Ernesto Guevara, também conhecido como Che], os escritos de Che quando da discussão sobre a lei do valor são postos de lado como um “labirinto de citações” inspirado em um “marxismo bíblico”. O jornalista francês Pierre Kalfon considera o brilhante ensaio “O socialismo e o homem em Cuba” como “um amontoado de fórmulas” inspiradas por “um dogmatismo de outros tempos”, isto é, pelo “palavrório marxista tradicional”!

Ora, se se ignora ou se despreza o pensamento de Che, suas ideias, seus valores, sua teoria revolucionária, seu marxismo crítico, como compreender sua coerência de vida, as principais razões de suas atitudes, a inspiração política/moral de sua prática, o fogo sagrado que o movia?

Diferentemente da maioria dos dirigentes da Revolução Cubana, Ernesto Guevara já possuía uma formação marxista antes de aderir ao Movimento 26 de julho, no México, em 1955. Ele descobriu o marxismo não apenas lendo Marx – graças à biblioteca de sua companheira Hilda Gadea e de seu amigo mexicano Orfila Reynal – e Lenin, ou os romances de Nazim Hikmet, Miguel Ángel Asturias e Jorge Icaza, mas também por meio de sua experiência política na Guatemala, quando do golpe contra Arbenz, vítima da CIA, da United Fruit e da traição das forças armadas.

Ele não chegou ao marxismo pela própria experiência revolucionária, mas tratou de, prontamente, decifrá-la recorrendo a referências marxistas, e, dessa forma, foi o primeiro a captar plenamente o significado histórico-social da Revolução Cubana, proclamando, em julho de 1960, que ela “descobriu também, por seus próprios métodos, os caminhos demonstrados por Marx”[3]Porém, algum tempo antes, em abril de 1959, ele já previa o rumo que o processo cubano tomaria depois da queda da ditadura de Batista: trata-se – dizia Che em entrevista a um jornalista chinês – de “um desenvolvimento ininterrupto da revolução”, até abolir “a ordem social existente” e seus “fundamentos econômicos”.[4]

De 1959 até sua morte, o marxismo de Che evoluiu. Ele se distanciou cada vez mais das ilusões iniciais sobre o modelo soviético de socialismo e sobre o estilo soviético – isto é, stalinista – de marxismo. Percebe-se, cada vez mais explicitamente, sobretudo em seus escritos a partir de 1963, a busca de um modelo alternativo, a tentativa de formular outra via ao socialismo, distinta dos paradigmas oficiais do “socialismo realmente existente”. Seu assassinato pelos agentes da CIA e por seus lacaios bolivianos, em outubro de 1967, interrompe um processo de amadurecimento político e de desenvolvimento intelectual autônomo. Sua obra não é um sistema fechado, um modelo acabado que possui resposta a todas às perguntas. Sua reflexão ficou incompleta em várias questões, como, por exemplo, a democracia sob a planificação econômica e a luta contra a burocracia.
O marxismo de Che se distingue das variantes dominantes em sua época; é um marxismo antidogmático, ético, pluralista, humanista, revolucionário. Alguns exemplos nos permitem ilustrar estas características.

Antidogmático: Marx, para Che, não era um papa ungido pelo dom da infalibilidade. Em suas “Notas para estudo da ideologia da Revolução Cubana” (1960), ele ressalta: mesmo sendo um gigante do pensamento, o autor d’O capital cometeu erros que podem e devem ser criticados. Por exemplo, no que toca à América Latina, sua interpretação de Bolívar ou a análise sobre o México que realiza junto com Engels, “em que admite determinadas teorias sobre raças ou nacionalidades que são hoje inadmissíveis”.[5]

Entretanto, os fenômenos de dogmatização burocrática do marxismo no século XX são mais graves que os equívocos de Marx; em várias oportunidades, Guevara se queixou da “escolástica que freou o desenvolvimento da filosofia marxista” – uma evidente referência ao stalinismo – e que impediu sistematicamente, inclusive, o estudo do período de construção do socialismo.[6]

Ético: A ação revolucionária é inseparável de certos valores éticos. Um dos exemplos é o trato aos prisioneiros da guerrilha: “A clemência mais absoluta o possível com os soldados que combatem cumprindo, ou que creem cumprir, seu dever militar (...) Os sobreviventes devem ser postos em liberdade. Os feridos devem receber cuidados utilizando todos os recursos disponíveis”.[7]Um incidente da batalha de Santa Clara ilustra o comportamento de Che: em resposta a um companheiro que propôs a execução de um tenente do exército, feito prisioneiro, diz Guevara: “Você acha que somos iguais a eles?”[8]

A construção do socialismo também é inseparável de determinados valores éticos, diferentemente do que advogam as concepções economicistas – de Stalin a Charles Bettelheim – que levam em conta apenas “o desenvolvimento das forças produtivas”. Em sua famosa entrevista ao jornalista Jean Daniel (julho de 1963), Che defendia, no que já se constituía uma crítica implícita ao “socialismo real”, que: “O socialismo econômico sem a moral comunista não me interessa. Lutamos contra a miséria, mas ao mesmo tempo contra a alienação (...). Se o comunismo desconsidera os fatos da consciência, poderá ser um método de distribuição, mas não se constitui como uma moral revolucionária.[9]

Pluralista: Apesar de Che não ter formulado uma concepção acabada da democracia socialista, ele defendia a liberdade de debate no campo revolucionário e o respeito à pluralidade de opiniões. O exemplo mais marcante é sua resposta – em um informe de 1964 a seus companheiros do Ministério da Indústria – à crítica de “trotskismo” feita a ele por alguns soviéticos: “Com relação a isso, creio que ou temos a capacidade de destruir com argumentos a opinião contrária ou devemos deixá-la se expressar (... ). Não se pode destruir uma opinião por meio da força, pois isso interrompe todo livre desenvolvimento da inteligência. Além disso, há uma série de aspectos do pensamento de Trotsky que pode ser levada em conta, ainda que, como acredito, ele tenha se equivocado em seus conceitos fundamentais e sua ação posterior tenha sido errônea (...)”[10]

Revolucionário: Na América latina, durante anos e décadas, o marxismo serviu como justificativa a uma política reformista de subordinação do movimento operário à aliança com uma suposta “burguesia nacional”, com vistas a uma suposta “revolução democrática, nacional e antifeudal” ([Victorio] Codovilla, para mencionar apenas um nome simbólico de todo um sistema político de corte stalinista). Em sua “Mensagem à tricontinental” (1966), Guevara cortou o nó górdio que atava pés e mãos dos explorados: “As burguesias autóctones perderam toda sua capacidade de oposição ao imperialismo – se alguma vez a tiveram – e constituem apenas sua retaguarda. Não há mais mudanças a serem feitas: ou revolução socialista ou a caricatura de revolução”[11]

Todos os escritos e discursos marxistas de Che, de 1959 até sua morte, seja sobre a realidade latino-americana, sobre a guerra de guerrilhas, sobre a luta internacional contra o imperialismo, sobre os problemas econômicos de Cuba, possuem um objetivo central, concreto e urgente: a transformação revolucionária da sociedade.

Insistiu-se muito sobre a teoria do foco guerrilheiro nos escritos de Che. Mas ele sabia que a revolução social é uma tarefa não apenas de uma – indispensável – vanguarda, mas das grandes maiorias: são “as massas (as que) fazem a história como um conjunto consciente de indivíduos que lutam por uma mesma causa (...) que lutam para sair do reino da necessidade e passar ao reino da liberdade”.[12]

Humanista: A leitura de Marx feita por Che é totalmente distinta da vulgata estruturalista, “anti-humanista teórica”, althusseriana, que tanto se difundiu na América Latina nos anos 1960-1970. Referindo-se ao Capital, ele escreve: “O peso deste monumento da inteligência humana é tal que nos fez, frequentemente, esquecer o caráter humanista (no melhor sentido da palavra) de suas inquietudes.

A crítica ao capitalismo – sociedade na qual “o homem é o lobo do homem” –, a reflexão sobre a transição ao socialismo, a utopia comunista de um homem novo: todos os temas centrais da obra marxista de Che têm fundamento no humanismo revolucionário. Sua formulação mais profunda, mais original e mais pessoal está no ensaio “O socialismo e o homem em Cuba” (1965): “Deixe-me dizer, correndo o risco de parecer ridículo, que o verdadeiro revolucionário é guiado por grandes sentimentos de amor”. Sem o amor aos povos, o amor à humanidade, sem estes sentimentos generosos “é impossível pensar num revolucionário autêntico”.[13]

A expressão concreta, prática, ativa do humanismo revolucionário é o internacionalismo. Em uma conversa com jovens comunistas, em 1962, Guevara insistia que o revolucionário deve “sempre se colocar os grandes problemas da humanidade como problemas próprios”, isto é, “deve se sentir angustiado quando, algum canto do mundo, um homem é assassinado, e até o ponto de se sentir entusiasmado quando, em algum canto do mundo, se levanta uma nova bandeira de liberdade”.[14] Para além de seus erros táticos, ou mesmo estratégicos, o compromisso pessoal de Che com a revolução no Congo e na Bolívia, arriscando sua vida, é a tradução destas palavras em atos.

O mundo – e a América Latina – passaram por muitas transformações nos últimos 30 anos. Não se trata de olhar para trás e procurar, nos escritos de Che, a resposta a todos nossos problemas atuais. Mas é fato que os povos continuam, hoje como ontem, sob a dominação do imperialismo; que o capitalismo, em sua forma neoliberal, continua produzindo os mesmos efeitos: injustiça social, opressão, desemprego, pobreza, mercantilização dos espíritos. O que é ainda pior: o capital financeiro multinacional nunca exerceu um poder tão aplastante, tão sombrio sobre todo o planeta. O capitalismo nunca conseguiu, como o faz agora, afogar todos os sentimentos humanos nas “águas glaciais do cálculo egoísta”. Por isso, necessitamos, hoje mais que nunca, do marxismo do Che, de um marxismo antidogmático, ético, pluralista, revolucionário, humanista.

No século XXI, quando os ideólogos neoliberais – que ocupam hoje a cena política e cultural – já estiverem esquecidos, as novas gerações ainda se recordarão do Che, e sua estrela continuará iluminando a luta da humanidade por sua emancipação.


[1]Tradução de Miguel Yoshida.
[2]Diretor de pesquisas no CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique) e dirige um seminário na École des Hautes Études en Sciences Sociales e autor de O pensamento de Che Guevara, Editora Expressão Popular.
[3]Discurso de 28 de julho de 1960, “Para o primeiro Congresso Latino-americano de Juventudes”, in: Ernesto Che Guevara, Obras 1957-1967, La Habana: Casa de las Americas, 1970, v. 2, p. 392. Daqui em diante esta edição será citada como Casa.
[4]E. Guevara, Selected Works, Cambridge, MIT Press, 1970, p. 372.
[5]“Notas para estudo da ideologia da Revolução Cubana” in: Che Guevara – Política, São Paulo: Expressão Popular, 2011, p. 115.
[6]Casa, v. 2, p. 190. Em um discurso, em abril de 1962, sobre Anibal Escalante e sua tentativa de stalinização do Partido Revolucionário Cubano, Guevara destaca a íntima relação entre alienação das massas, burocratismo, sectarismo e dogmatismo. In: Ernesto Guevara, Obra revolucionaria, Mexico: Era, 1967, p. 333.
[7]Che Guevara, “La guerra de guerrillas”, Casa, v. 1, p. 46.
[8]Citado en Paco Ignacio Taibo II, Ernesto Guevara,também conhecido como Che, São Paulo: Expressão Popular, 2011, p. 261.
[9]In: L’Express, 25 de julho de 1963, p. 9.
[10]Che Guevara, “Il piano i gli uomini”, Il Manifesto n. 7, dezembro de 1969, p. 37.
[11]Casav. 2, p. 589. É impressionante o paralelo com a tese de José Carlos Mariátegui, em 1929: “À América do Norte plutocrática, imperialista só se pode opor de maneira eficaz uma América Latina ou ibérica socialista. (...) O destino destes países, dentro da ordem capitalista, é o de ser simplesmente colônias”. (J. C. Mariátegui, El proletariado y su organizacion, Mexico, Grijalbo, 1970, p. 119-121.
[12]Casa, v. 2, p. 249, 375, 383.
[13]“O socialismo e o homem em Cuba”, in: Che Guevara – política, ed. cit., p. 265.
[14]“O que deve ser um jovem comunista”, in: ed. cit, p. 279, 277.