Segundo Jorge Cavalcanti Boucinhas Filho, diante de um
movimento grevista prevalece o sentimento de consumidor lesado, ao invés da
solidariedade com o outro trabalhador
02/07/2012
Suzana Vier,
Os trabalhadores brasileiros reagem a greves muito mais como
consumidores do que como trabalhadores. Para o advogado Jorge Cavalcanti
Boucinhas Filho, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP), o direito de
greve fica enfraquecido diante da ascensão do direito do consumidor. “Cada vez
mais, quando nos deparamos com um movimento grevista, nos vemos na condição de
consumidor lesado, do que na condição de trabalhador solidário com outro
trabalhador”, disse Jorge.
O direito de greve está garantido na Constituição, mas é um
direito paradoxal, conforme o pesquisador. “É o direito de você causar prejuízo
a outro para tentar melhorar a sua condição social. A greve é um instrumento
democrático e a sua composição é de um prejuízo deliberado a outro”, explicou.
Em sua tese de doutorado “Tutela judicial e movimentos
grevistas: um estudo sobre a atuação dos órgãos do poder Judiciário diante das
novas formas de manifestação coletiva dos operários”, Jorge analisou que o
poder Judiciário “está fazendo uma leitura equivocada em muitos casos” sobre o
direito de greve, principalmente em decisões que consideram greves abusivas e
determinam interdito proibitório, a pedido das empresas. Essa medida em geral
proíbe a atuação sindical em greves e manifestações de trabalhadores. “A tutela
preventiva em matéria de direito de greve não deve ser a regra, deve ser a
exceção”, apontou. “Na verdade, o Judiciário deve agir preventivamente para
assegurar que o direito de greve realmente ocorra.”
Acompanhe a entrevista do pesquisador na íntegra:
Em sua tese de doutorado, você analisou o direito de
greve. Você pondera que atualmente é mais difícil fazer greve?
O meu trabalho foi inspirado por uma denúncia feita pelo
movimento sindical brasileiro contra o governo, na OIT, sobre violações ao
direito de greve, à liberdade sindical, através de intervenções judiciais nos
movimentos grevistas. Eles alegavam que os interditos proibitórios violavam
efetivamente os direitos de greve. Curioso com essa história, eu resolvi
pesquisar efetivamente como se comportava o Judiciário diante das manifestações
grevistas no cenário atual no Brasil. A partir daí, eu desenvolvi uma série de
pesquisas e a primeira conclusão relevante a que eu cheguei foi que a nossa
legislação trabalhista trata a greve ainda pensando nas paralisações de
atividades. Hoje, o mercado se concentra cada vez mais em serviços e não na
produção fabril. Para essas atividades, a greve se vista pela nossa legislação
atual, se torna inexplicável. É difícil para algumas atividades você fazer uma
paralisação que efetivamente pressione o empregador nos dias atuais, pelo menos
se você tentar enquadrar essa paralisação no rigor da legislação trabalhista.
Vou citar só um exemplo aqui, que talvez seja o mais sintomático, que é o dos
bancários. Se eu não me engano, em 1980, se os bancários parassem as
atividades, os bancos fechavam e a economia ficava toda prejudicada.
Mas hoje, com a internet e com a terceirização de alguns
serviços para os correspondentes bancários, os funcionários entram em greve e
ninguém nem toma ciência disso. Essa informação sequer chega à população de um
modo geral.
A globalização também impactou muito nos movimentos grevistas.
Hoje, se uma empresa começa a dar problemas e há manifestações efetivas dos
trabalhadores, ela consegue mais facilmente sair daquela região e procurar
outro país. E também houve terceirização dos serviços. Muitas vezes você tem
uma situação em que a greve é difícil dentro do próprio ambiente de trabalho,
porque você não cria um grupo coeso de trabalhadores da mesma categoria.
Existem várias categorias e isso torna muito difícil uma manifestação, um
ajuste entre eles, para desenvolver uma atividade coletiva para pressionar o empregador,
ou os empregadores.
Você identificou como agem os empregadores para evitar
que os trabalhadores exerçam seu direito de greve?
O que eu pude efetivamente perceber é que em parcela
expressiva dos casos, os empregadores ajuizavam ações chamadas interditos
proibitórios, para nessas ações discutir que direitos seus estariam sendo
postos em confronto com o direito de greve. As alegações mais comuns eram que
as paralisações violavam os direitos de propriedade do empregador. Outra
alegação corriqueira é de que algumas paralisações impediam os clientes de
terem acesso à empresa e violavam o direito de ir e vir desses empregadores. E
uma terceira situação, muito corriqueira também, é a de que o direito de greve
violaria o direito ao trabalho daqueles que não queriam participar da greve,
mas não conseguiam chegar até o estabelecimento fabril.
O que eu pude constatar efetivamente é que na grande maioria
dos casos houve alegação de violação a um direito de terceiros, como os
clientes por exemplo. Ou mesmo de um direito do empregador. O Judiciário muitas
vezes adotava posturas de tutela preventiva impedindo ou dando decisões que
enfraqueciam o movimento grevista.
Só para citar um exemplo muito pontual que foi estudado na
minha tese foi o da greve dos aeronautas em 2010. Naquele momento, os
aeronautas anunciaram uma greve pouco antes do Natal. Lógico que houve um
clamor popular gigantesco contra o movimento grevista, com a alegação de que a
greve era oportunista. Eles alegavam que os aeronautas estavam usando o período
do Natal, para tentar coagir o empregador a aceitar suas reivindicações. E a
partir disso, o Judiciário tomou duas decisões conflitantes. Uma dizendo que a
categoria deveria manter 100% das atividades e outra mostrando que a categoria
deveria manter 70% das atividades. Com isso, a greve acabou.
O ponto que eu coloco em questão sobre esse evento específico
é o de que a Constituição assegura aos trabalhadores o direito de definir o
interesse e a oportunidade em que a greve será realizada. Ou seja, os interesses
que serão defendidos pela greve e qual será a oportunidade em que essa greve
será realizada. E isso foi feito. Foi escolhido um momento oportuno. Por
exemplo, não adianta os professores fazerem greve no período de férias
escolares, afinal não vai atingir ninguém. Então não é relevante fazer uma
greve no setor aéreo na baixa estação. Na verdade tem de ter no mínimo um
impacto. Então, ao atribuir aos trabalhadores o direito de definir o momento em
que a greve será realizada, o que a Constituição fez foi justamente viabilizar
o movimento grevista. Se nós sabemos do direito de definir a oportunidade e de
certa forma aprendemos os elementos fundamentais para que uma greve tenha
eficácia e naturalmente em uma categoria como a dos aeronautas, qual é o melhor
momento para se fazer uma greve? É o momento em que você tenha mais voos que é
justamente o período do Natal. Mas existe hoje uma outra situação que acaba
enfraquecendo o movimento grevista que é a ascensão do direito do consumidor.
Então, cada vez mais, quando nos deparamos com um movimento grevista, nos vemos
mais na condição de consumidor lesado, do que na condição de trabalhador
solidário com outro trabalhador.
Se os metroviários estiverem em greve, isso vai atrapalhar o
nosso trajeto até o trabalho. A reação imediata é pensar que é um absurdo isso
acontecer. A greve é um direito paradoxal justamente porque é o direito de você
causar prejuízo a outro para tentar melhorar a sua condição social. A greve é
um instrumento democrático e a sua composição é de um prejuízo deliberado a
outro.
Então, a greve naturalmente pressupõe algum prejuízo?
Lógico que você não pode atingir a produtividade da empresa,
você não pode, por exemplo, quebrar a fábrica para reivindicar. Não é isto. Mas
você tem de atingir a produção da empresa, pelo menos momentaneamente, para que
a greve seja eficaz. É um direito que pressupõe de fato que exista algum
prejuízo e, em geral, esse prejuízo não é causado só ao empregador, porque a
rigor, para você atingi-lo, você precisa atingir primeiro o cliente dele,
fazendo com que a receita – o lucro – caia e ele se sinta coagido a negociar.
No caso dos aeronautas, provavelmente se não houvesse a
decisão judicial, determinando que a categoria mantivesse as atividades
normais, o que teria ocorrido, imagino, é que as empresas aéreas apresentariam
contraproposta, negociariam ou ouviriam melhor os trabalhadores, acerca
daquelas discussões que estavam sendo apresentadas ali.
Como houve a decisão, essa negociação não foi necessária, o
movimento simplesmente minguou. Essa perspectiva de nos vermos sempre como
consumidores lesados e nunca como trabalhadores solidários aos outros
trabalhadores que estão fazendo a reivindicação, acaba fazendo uma remissão a
um momento histórico já superado. Existe até o livro “Germinal”, de Émile Zola,
que trabalha muito bem essa perspectiva, quando retrata uma realidade do início
da revolução industrial, nas minas de carvão da França. Em um determinado
momento chega um sujeito com ideais libertários, um sindicalista, que consegue
cooptar os demais trabalhadores para fazer uma greve, para pressionar o
empregador a atender algumas reivindicações que passavam por questões de
segurança e saúde. O empregador, num primeiro momento, não se sensibiliza com a
greve porque ele tinha estoque de carvão para queimar, vender e consumir.
Os trabalhadores começam a passar fome porque era o embrião do
movimento grevista revolucionário. Não tinha organização e fundo de greve, que
os assegurassem a manutenção naquele período. Mas quando o empregador
efetivamente começa a sentir o peso da greve, porque o seu estoque está
acabando e ele já não está mais conseguindo atender às demandas de seus
clientes, ele vai lá e coopta os trabalhadores na Bélgica, no país vizinho. Quando
esses belgas chegam, o que acontece na prática é que os trabalhadores
grevistas, em vez de continuarem a manifestação contra o empregador, eles
acabam se voltando contra os belgas que estavam chegando no recinto. O que
mostra que em determinadas situações, certas posturas adotadas pelo empregador,
diante do movimento grevista, acabam colocando trabalhadores contra
trabalhadores.
O lado de consumidor fala mais alto?
É um pouco do que acontece quando o Judiciário intervém de
forma preventiva na greve ou até mesmo como a mídia retrata algumas greves, em
que ao sensibilizar a população pelo seu lado consumidor que efetivamente, e
inevitavelmente, acaba sendo afetado, acabam colocando outros trabalhadores
contra os trabalhadores que estão fazendo a greve e não contra o empregador.
Há critérios legais para determinar uma greve abusiva
devido a prejuízos ao consumidor?
Não existe de fato. Nenhuma greve é abusiva por causar lesão
ao consumidor. Em geral, essa lesão ao consumidor, é um pressuposto para que a
greve seja eficaz. Você consegue atingir a produção se você, de certa forma,
prejudicar o consumidor.
Você analisa que cabe uma atualização na legislação, a
fim de cumprir a Constituição e de ser realista e justo com os trabalhadores?
A conclusão que cheguei a partir do meu estudo foi a de que,
em primeiro lugar, a tutela preventiva em matéria de direito de greve não deve
ser a regra, deve ser a exceção. Na verdade, o Judiciário deve agir
preventivamente para viabilizar que a greve ocorra. Por exemplo, construindo
liminares para que os trabalhadores grevistas não sejam dispensados durante a
greve ou evitando que os dirigentes sindicais sejam transferidos para tentar
enfraquecer o movimento. O Judiciário deve agir preventivamente para assegurar
que o direito de greve realmente ocorra e nunca para resguardar interesses de
outros, frente ao direito de greve. Na prática, muitas vezes quando você entra
com interdito proibitório, o juiz dá uma liminar culminando com multa para a
hipótese de a greve ser realizada de forma abusiva e ilegal.
Essa multa, ainda que ela não seja aplicada, e seja só uma
culminação a ser observada no futuro, primeiro, ela parte de uma suposição de
que a greve será abusiva e você não tem como saber se uma greve é ou não é,
será ou não será, abusiva, antes que ela seja efetivamente deflagrada. Esse é
um primeiro ponto. A segunda questão que é preciso ponderar, também, é que com
a multa, o trabalhador que está indeciso normalmente fica no trabalho. Para o
trabalhador indeciso, se você chega com uma decisão judicial, que culmina em
multa, o que o trabalhador comum vai pensar? “O Judiciário está do lado da
empresa. Vou fazer greve para quê?” Isso acaba enfraquecendo o movimento
grevista.
Eu sigo uma leitura da legislação a partir da Constituição.
Não seria necessariamente uma nova legislação, mas releitura do nosso
ordenamento jurídico, tendo como premissa a Constituição que atribui ao juiz a
competência para considerar abusivas greves que efetivamente causem prejuízos
desproporcionais para atingir a produtividade, não a produção.
O Judiciário está agindo contrariamente à
Constituição?
Eu não afirmaria que o Judiciário está indo contra a
Constituição, mas que está fazendo uma leitura equivocada em muitos casos do
direito de greve ao tutelar os direitos outros ao fato do direito de greve,
fazendo com que este não venha a ser exercido.
Quando uma greve pode realmente ser considerada
abusiva?
Primeiro, quando ela causar prejuízos à produtividade e não à
produção da empresa. Quando você tiver uma greve que cause prejuízo à
produtividade, por ter sido violenta, por ter causado um prejuízo
intransponível, por ter prejudicado o maquinário e os instrumentos de trabalho
da empresa, nesses casos a greve seria abusiva.
A premissa da qual eu parto, a partir de uma leitura da
Constituição é que se deve considerar a greve abusiva, não simplesmente a
partir do cumprimento da legislação, como alguns juízes adotam, mas somente
quando ficar caracterizado que houve um prejuízo desproporcional que atingiu
toda a produtividade. Você teria que ter o dano como pressuposto da
abusividade.
Na prática, o que nós temos hoje são decisões interpretando
friamente a lei - que traz uma série de requisitos para a realização da greve
-, mas, depois diz que o descumprimento de qualquer deles torna a greve
abusiva. São argumentos, por exemplo, de que quando não é observado o prazo de
48 horas por falta de três horas de diferença, o juiz já considera uma greve
abusiva. Imagine, por exemplo, que os trabalhadores comuniquem a greve na quinta-feira,
ao meio-dia, e a paralisação comece no sábado às 9h. Houve uma diferença de
três horas. A lei foi descumprida. Bom, de fato, como requisito legal, a lei
estabelecida tem horas, esta diferença gera um descumprimento da lei. Se você
for aplicar rígida e cegamente a nossa legislação, a greve é abusiva, ainda que
ela não cause prejuízo à produtividade.
O que o movimento sindical pode fazer para mudar esse
panorama desfavorável ao trabalhador?
Na minha leitura, a única forma de se mudar essa realidade
passaria por uma mudança cultural: um trabalho de conscientização coletiva em
que nós percebêssemos a premissa geral que é uma premissa de solidariedade.
Para o direito de greve ser efetivamente um direito do ordenamento jurídico é
preciso que todos os trabalhadores admitam a perspectiva de sofrer algum
transtorno momentâneo ao seu direito como consumidores, para que outros
trabalhadores consigam melhorias sociais. Na expectativa de que esses que em um
primeiro momento eram consumidores, quando precisem fazer suas próprias
reivindicações, os outros também admitam sofrer algum tipo de prejuízo ao seu
direito como consumidor. O que acho que é o marco é o dos metroviários. A greve
do metrô causa prejuízos momentâneos a praticamente todas as outras categorias
de trabalhadores. Mas se você não admitir essa lesão ao seu direito de
consumidor para que outros consigam exercer o seu direito de greve, ele vai
acabar. Tem de ser uma ideia de solidariedade: “eu admito sofrer algum tipo de
contrariedade para que os metroviários façam suas reivindicações, na
expectativa de que, se algum dia eu precisar fazer as minhas reivindicações, os
metroviários assumam também o prejuízo ao seu direito como consumidor. A lógica
do direito de greve é essa.
Colaboraram Lauany Rosa, Vanessa Ramos e Estevam Muniz.
Matéria originalmente publicada em: http://www.brasildefato.com.br/node/9989
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