Médicos apontam para fenômeno ligado ao corte de cana sob
altas temperaturas: a Doença Renal Crônica. Empresas se recusam a reconhecer o
problema e demitem trabalhadores doentes
LA ISLA, Nicarágua — Maudiel Martinez tem 19 anos e um sorriso tímido,
cabelos pretos encaracolados e um corpo magro, com uma estrutura muscular
formada pelos anos de trabalho nos campos de cana de açúcar. Na maior parte de
sua adolescência, ele foi saudável e passava seus dias cortando talos altos de
cana com seu facão.
Agora Martinez sofre de uma doença fatal que está devastando sua comunidade
e dezenas de outras na América Central, onde já dizimou fileiras de
trabalhadores da cana. A mesma doença matou seu pai, seu avô e castiga seus
três irmãos mais velhos.
“Essa doença come nossos rins por dentro”, diz Martinez. “Não queremos
morrer, estamos tristes porque já sabemos que não há esperança para nós.”
A doença de Martinez está no coração de um
mistério letal – e do legado de negligência por parte da indústria e de governos
como o dos Estados Unidos, que resiste a apelos para uma ação agressiva de
destaque à doença e busca de uma solução. Mais do que a vida de que colhe a
cana, as nações ricas estão focadas em estimular a produção de biocombustíveis
na indústria da cana e em manter o grande fluxo de açúcar para os consumidores
americanos e fabricantes de alimentos.
Pouco notada pelo resto do mundo, a Doença Renal
Crônica (DRC) está cortando vidas e abrindo uma clareira entre as populações
mais pobres do mundo, a faixa se estende em um trecho da Costa do Pacífico da
América Central que abrange seis países e cerca de 700 quilômetros. Suas
vítimas são trabalhadores braçais, principalmente da cana.
Em cada ano de 2005 a 2009, a insuficiência renal
matou mais de 2,800 homens na América Central, de acordo com a análise dos
últimos dados da OMS feita pelo
Consórcio
Internacional de Jornalistas Investigativos. Somente em El Salvador e na
Nicarágua, nas últimas duas décadas, o número de homens morrendo de doenças no
rim quintuplicou. Hoje, mais homens morrem de DRC do que de HIV/AIDS, diabetes
e leucemia juntos.
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Mapa da América Central mostra o número de mortes por doenças renais em 2009 e o aumento % nas taxas de mortalidade durante o período de 2005 a 2009 |
“Ninguém deveria morrer de doença renal no século 21”, diz Ramon Trabanino,
médico de El Salvador que estudou a epidemia durante uma década.
O surto da doença é esmagador em hospitais,
esgotando os orçamentos de saúde, e deixando um rastro de viúvas e crianças nas
comunidades rurais. Em El Salvador, a DRC é a segunda principal causa de morte
para os homens. Na província de Guanacaste, Costa Rica, o hospital regional
teve de começar um programa de diálise em casa porque estava sobrecarregado com
tantas vítimas da DRC que começou a ficar sem leitos para tratar pacientes com
outras doenças.
Tantos homens morreram em algumas partes rurais da Nicarágua que a
comunidade de Maudiel Martinez, antes chamada de “A Ilha”, agora é conhecida
como “A Ilha das Viúvas” — La Isla de las Viudas, em espanhol.
À primeira vista, a comunidade abundante cercada
por vastos campos de cana se parece com muitos lugares da América Latina: as
crianças andam de bicicleta por estradas de terra e brincam ao lado de cães,
porcos e galinhas. Mas hoje há poucos homens nos quintais. No interior das
casas, fotografias emolduradas de maridos, pais e irmãos mortos decoram mesas e
balcões. Não há grupos de homens mais velhos, trocando fofocas e notícias, como
se vê frequentemente em comunidades no interior da costa do Pacífico.
Aqui, as mulheres se esforçam para ganhar pouco dinheiro fazendo bicos.
Algumas já estão nos campos de cana de açúcar que elas acreditam ter levado
seus maridos.
“Meus filhos sofreram muito”, diz Paula Chevez Ruiz, viúva de La Isla cujo
marido Virgilio morreu em 2009, deixando-a para sustentar quatro filhos
sozinha. Quando ela consegue encontrar clientes, vende frutas e enchiladas. “É
triste querer dar a seus filhos, mas não ter nada. Às vezes, nem mesmo o
suficiente para comprar um saco de sal. ”
Enigma fatal e um punhado de pesquisadores
Nos EUA, as principais causas de doença renal
crônica são a diabetes e a hipertensão. Mas a doença – que leva a um declínio
progressivo da função renal – normalmente pode ser
controlada
com tratamento.
Médicos entendem suas causas e curas.
Na América Central, as origens da doença são um
enigma, e ela é frequentemente letal. Trabalhadores que sofrem nos campos de
cana de açúcar perto do Pacífico não têm, geralmente, nem diabetes, nem
hipertensão.
Alguns cientistas suspeitam que a exposição a uma
toxina desconhecida, potencialmente no trabalho, pode desencadear o início da
doença. Os pesquisadores concordam que a desidratação e o stress térmico do
trabalho árduo são provavelmente fatores contribuintes – e podem até causar a
doença. Trabalhadores que normalmente não são pagos por hora ou dia, mas com
base na quantidade que colhem, muitas vezes trabalham até o ponto de grave
desidratação ou colapso, potencialmente prejudicando seus rins em cada turno.
A DRC geralmente ataca os pequenos vasos
sanguíneos do rim chamados
glomérulos;
a epidemia da América Central ataca os túbulos dos rins. A DRC afeta geralmente
as pessoas mais velhas, com igual distribuição entre os sexos; esta epidemia
afeta predominantemente homens em idade de trabalho, principalmente trabalhadores
da cana, mas também mineiros e outros trabalhadores agrícolas.
Uma crescente comunidade de pesquisadores está
chamando atenção para o reconhecimento de uma nova doença ainda não incluída
nos manuais médicos: “nefropatia mesoamericana”, “nefropatia agrícola endêmica”
ou “nefropatia da cana.” O diretor do programa nacional de DRC em El Salvador
tem
escrito sobre uma “Nefropatia Regional Mesoamericana”
que um dia poderá ser reconhecida internacionalmente.
“É importante que a Doença Renal Crônica que aflige milhares de
trabalhadores rurais da América Central seja reconhecida como o que é: uma
grande epidemia com um impacto enorme na população”, disse
Victor
Penchaszadeh, um epidemiologista clínico da Universidade de Columbia e
consultor da Organização de Saúde Pan Americana sobre as doenças crônicas da
América Latina.
Ramon Vanegas, um nefrologista que avalia pedidos
de pensões de doenças ocupacionais dos trabalhadores para o Instituto de
Segurança Social da Nicarágua, disse que os casos que ele define como “DRC
trabalhista” seguem um padrão de lesão renal tubular combinado com um histórico
de insolação.
“Normalmente, eles estão trabalhando e têm espasmos musculares, ficam febris
e entram em colapso”, disse Vanegas sobre os pacientes cujos pedidos ele
aprova. “Então eles voltam a trabalhar, eles enfrentam os mesmos riscos, e o
ciclo se repete. Então, dois ou três anos mais tarde, o paciente tem [DRC].”
Enquanto os médicos ponderam sobre rótulos e
diagnósticos, o mistério persiste: Por que essa forma de DRC ataca homens de
uma forma particular – e nesta região específica?
Alguns estudos sugerem que fatores de risco, da
exposição a pesticidas, passando pelo abuso de álcool ao uso frequente de
drogas anti-inflamatórias, podem desempenhar papéis importantes no início da
DRC. Outros mostram que os mineiros, estivadores e trabalhadores de campo nas regiões
afetadas também têm altas taxas de DRC. Um estudo na Nicarágua encontrou uma
cidade mineira que tinha uma das taxas mais elevadas de prevalência no país.
“A evidência nos aponta mais fortemente a hipótese de que talvez estresse
térmico – trabalho duro em um clima quente, sem reposição suficiente de
líquidos – pode ser uma causa desta doença”, disse Daniel Brooks, pesquisador
chefe da equipe científica da Universidade de Boston que está entre um punhado
de grupos de realização de estudos iniciais.
Durante o dia, a equipe observou os trabalhadores
da cana de açúcar em uma temperatura média de 35 graus Celsius nas plantações.
O relatório observou que a Administração Ocupacional de Segurança e Saúde dos
EUA, que fiscaliza a segurança nos locais de trabalho, pede 45 minutos de
descanso para cada 15 minutos de trabalho nesse nível de estresse de calor.
A
investigação preliminar da equipe reforça a hipótese de
estresse por calor; amostras de sangue e urina colhidas de diferentes tipos de
cortadores de cana durante o curso de uma safra mostram mais evidências de dano
renal entre aqueles que realizaram um trabalho extenuante ao ar livre.
Anteriormente, a equipe identificou uma série de práticas de trabalho e
produtos químicos na empresa que poderiam danificar os rins. Brooks disse que
mais pesquisas são necessárias antes que conclusões possam ser tiradas.
Estudos internos feitos pela Nicaragua Sugar,
donos de uma das maiores plantações de açúcar da América Central, fornecidos
pela empresa para o ICIJ, mostram que a empresa tem uma longa evidência de uma
epidemia ligada ao estresse por calor e desidratação. Em 2001, o médico da
empresa, Felix Zelaya, realizou um estudo interno sobre as causas da DRC entre
os seus trabalhadores. “O trabalho extenuante com a exposição a altas
temperaturas ambientais sem um programa de hidratação adequada predispõe os
trabalhadores a síndrome de estresse por calor [insolação], que é um fator
importante no desenvolvimento da DRC”, concluiu Zelaya.
A Nicaragua Sugar e outras empresas dizem ter agido voluntariamente para
proteger os trabalhadores, melhorando a hidratação, reduzindo a jornada de
trabalho e reforçando a fiscalização de empreiteiros de trabalho.
Mesmo assim, a Nicaragua Sugar contesta a existência de um raro problema no
rim afetando seus trabalhadores. “Estamos convencidos de que não temos nada a
ver com doença renal”, disse o porta-voz da Ariel Granera. “Nossas práticas
produtivas não geram e não são fatores causais da doença renal crônica.”
Sinais de problema
Em 2000, o médico salvadorenho Trabanino notou um
grande número de homens jovens e de meia-idade que entram em seu hospital em El
Salvador, todos com casos avançados de doença renal crônica. “Por alguma razão,
para o resto do mundo isso parecia normal”, lembrou. “Para mim, parecia
estranho e curioso.”
Em 2002, Trabanino publicou um dos seus primeiros
estudos
sobre a doença, um perfil de 205 novos pacientes que entraram em seu hospital
em estágio final da doença renal. Dois terços desses casos não tinham os
fatores de riscos habituais para doença renal crônica – e tinham alguns
aspectos em comum.
“Eram quase todos homens que viviam nas zonas baixas do país, perto da
costa, perto de um grande rio”, escreveu Trabanino no Jornal Pan-Americano de
Saúde Pública. Um grande grupo destes pacientes também descreveu “contato
profissional frequente com inseticidas e pesticidas, sem proteção adequada.”
Outro estudo com pacientes renais do norte da
Costa Rica – mais uma vez a partir de uma região sufocante, de baixa altitude,
perto da costa do Pacífico – descreveu um padrão semelhante.
“Todos são homens jovens, entre as idades de 20 e 40 anos,”
escreveu o Dr. Manuel Cerdas, de Costa Rica, no Kidney
International Journal. “A característica mais interessante nesses pacientes é
epidemiológica – todos eles são trabalhadores nos campos de cana de açúcar há
um longo tempo”.
Cerdas descobriu mais tarde que as vítimas da
epidemia dividiam outra condição: a doença havia atacado uma parte de seus
rins: os túbulos. A doença de túbulo-intersticial é geralmente rara –
correspondendo a apenas 3,7% dos casos de doença renal em estágio final nos
Estados Unidos. As causas conhecidas incluem exposição a tóxicos e
desidratação.
Hoje, El Salvador promove testes de sangue nas
áreas rurais mais atingidas para tentar pegar casos em estágios tratáveis.
Trabanino, que estudou a epidemia por mais de uma década, diz acreditar que o
rastreamento, campanhas para educação pública e melhorias na segurança do
trabalhador poderiam parar a propagação da doença – se houvessem recursos
disponíveis.
Pesquisadores na América Central, enquanto isso,
encaram uma batalha difícil. Os poucos estudos sobre DRC feitos até agora têm
sido conduzidos em hospitais e comunidades afetadas, onde as pessoas já estavam
doentes. Teorias sobre o papel que produtos químicos tóxicos podem desempenhar
na causa da doença são difíceis de serem testadas porque os cientistas precisam
ter acesso às vítimas da epidemia enquanto eles estão adoecendo.
Silêncio sobre a DRC; ação rápida sobre biocombustível
Empresas produtoras de açúcar da América Central
têm sido relutantes em abrir suas portas para os pesquisadores de saúde
externos. Os defensores acreditam que a indústria teme a designação da doença
como uma doença ocupacional. A resistência começou a amolecer notadamente na
plantação do Engenho de San Antonio da Nicaragua Sugar, onde a equipe da
Universidade de Boston está trabalhando. Mas a indústria em geral tem impedido
o contato de cientistas independentes com as propriedades de suas empresas,
funcionários ou registros.
Aurora Aragon, especialista em saúde ocupacional
na Universidade de Leon, na Nicarágua, disse que, em 2004, pesquisadores de uma
ONG internacional chamada
SALTRA pediram
a empresas líderes no ramo de açúcar da Nicarágua que colaborassem em um estudo
de segurança do trabalho. Ela diz que o Engenho San Antonio e o Engenho Monte
Rosa ignoraram o pedido.
Em 2007, Aragon diz, outro pedido de acesso foi feito por seus colegas e foi
rejeitado pelo Engenho San Antonio. “No fim, essa foi a conclusão”, diz ela.
“Nenhuma empresa de açúcar nos deu permissão para estudar o problema.”
Mario Amador, um porta-voz do grupo comercial da
indústria de açúcar da Nicarágua, que representa as plantações abordadas por
SALTRA, disse que a indústria tem permitido estudos por médicos, estudantes de
medicina e autoridades de saúde, mas devem ter cuidado na partilha de
informações com pessoas de fora.
“Pessoas com más intenções tentaram ligar a DRC com o trabalho na indústria
do açúcar, pois esta indústria foi a primeira a encontrar altas taxas de DRC na
força de trabalho que veio para as fazendas em busca de trabalho”, diz Amador.
“É por causa desses ataques constantes que as plantações e seus funcionários
são muito cuidadosos sobre a informação que fornecem a qualquer pessoa ou
instituição”.
Produtores da América Central têm um papel
significativo no negócio global de açúcar; em 2011, os EUA importaram mais de
330.000 toneladas de açúcar da região, representando 23% do total das
importações de açúcar bruto.
Para além da mesa da cozinha, o governo dos EUA
tem promovido pesadamente a indústria do açúcar – nas áreas afetadas pela
epidemia – como fonte de biocombustível a partir do etanol. Os EUA financiou
conferências para promover os biocombustíveis, tanto na Nicarágua e como em El
Salvador apenas em 2008, de acordo com os telegramas das embaixadas divulgados
pelo WikiLeaks. Seus embaixadores se reuniram várias vezes com os líderes de
indústrias de açúcar de ambas as nações, e se lamentaram que a incapacidade de
desenvolver a produção de etanol iria conduzir essas nações rumo a dependência
das importações de petróleo da Venezuela de Hugo Chávez.
Em 2007, o então embaixador Paul Trivelli
notificou
o Departamento de Estado dos EUA sobre o primeiro carregamento de
etanol do Engenho San Antonio e escreveu que a empresa tinha abraçado “o
potencial para desenvolver a indústria e os aspectos positivos dos
biocombustíveis.” Mas ele expressou a preocupação de que o presidente
esquerdista da Nicarágua, Daniel Ortega, poderia ser influenciado pela oposição
aos biocombustíveis do presidente venezuelano, Hugo Chávez.
No ano seguinte, Trivelli
escreveu
que o Departamento de Estado havia designado a Nicarágua como um “país
de alta prioridade” para os biocombustíveis. A embaixada de El Salvador,
vizinho do norte da Nicarágua, também promoveu o etanol vigorosamente:
embaixadores se reuniram com líderes da indústria de açúcar, compartilharam
preocupações com o Departamento de Estado sobre os efeitos políticos de
importações de petróleo da Venezuela, e patrocinaram uma conferência para
promover os biocombustíveis.
O Banco Mundial, por sua vez, forneceu mais de US
$ 100 milhões em empréstimos para promover a produção de biocombustíveis em
duas plantações altamente afetadas, que aprovou sem consideração formal da
doença renal. Depois de os trabalhadores se queixarem, o Banco concedeu $ 1
milhão para patrocinar o estudo em curso da Universidade de Boston.
Antes de receber os empréstimos, as empresas
precisavam assegurar o Banco que eles estavam de acordo com os padrões sociais
e ambientais. Equipes de avaliação publicaram apreciações elogiosas às práticas
do Engenho San Antonio e do Engenho Monte Rosa em setembro de 2006 e maio de 2007.
Nenhum relatório mencionou a DRC.
Em outubro de 2006, o conselho da International
Finance Corporation (IFC) – credor do Banco Mundial para projetos do setor
privado – aprovou um empréstimo de 55 milhões de dólares para o Engenho San
Antonio. Um empréstimo de 50 milhões de dólares para Monte Rosa foi aprovado em
junho de 2007.
Com o dinheiro, as empresas expandiram, mandando mais trabalhadores para as
plantações de cana.
Edgar Restrepo, um oficial sênior de
investimentos para o IFC, disse que sua equipe considerou a DRC quando avaliou
o Engenho San Antonio, mas que o conteúdo de suas deliberações é confidencial.
A porta-voz do IFC, Adriana Gomez, diz que o IFC tinha “cumprido com os seus
rigorosos padrões sociais e ambientais em um processo de due diligence.”
Um impasse na Cidade do México
Enquanto governos da América Central têm comprometido poucos recursos para o
combate à DRC, eles começaram a soar os alarmes.
O governo de El Salvador tem sido enfático nos
pedidos por ajuda de pesquisas internacionais. Na conferência da cúpula dos
ministros da saúde das Nações Unidas em fevereiro deste ano na Cidade do
México, a ministra da saúde de El Salvador, Maria Isabel Rodriguez,
declarou que a doença renal crônica
estava “desperdiçando nossas populações” na América Central. Ela chamou os
outros ministros de saúde a incluir a DRC entre as principais doenças crônicas
nas Américas, um passo que pode atrair fundos das Nações Unidas para estudos.
A proposta de Rodriguez entrou em forte oposição com o participante mais
poderoso da cúpula: os Estados Unidos.
Rodriguez disse que a delegação dos EUA recusou-se
a incluir a doença na lista das doenças crônicas mais graves do continente
tanto quanto aceitar a linguagem que sugere que a epidemia teve causas
relacionadas à exposição a produtos químicos tóxicos.
Representantes da América Central disseram que
eles estavam tão irredutíveis que se recusaram a assinar a declaração final da
conferência, a menos que a DRC fosse incluída. Por vários momentos de tensão, a
disputa ameaçava descarrilar o consenso da conferência. Resultado: uma única
frase mencionando a doença renal crônica na América Central.
David McQueen, um delegado dos Estados Unidos e membro dos Centros de
Controle e Prevenção de Doenças, disse ao ICIJ que os EUA se opuseram a
mencionar a DRC para manter o foco no diabetes, nas doenças cardíacas e no
câncer.
“As declarações que são feitas raramente são bem sucedidas, a não ser que
sejam muito segmentadas”, disse ele.
McQueen, que já se aposentou, disse que não tinha
conhecimento da dramática disseminação da doença renal crônica até que o
assunto foi levantado na conferência. “O assunto da doença renal crônica pegou
todos de surpresa”, disse ele. “Por que isso está sendo fortemente deixado de
lado?” McQueen aprendeu na reunião que “é um problema significativo”,
estimulando “uma grande quantidade de recursos” para médicos e hospitais na
América Central.
No entanto, mesmo depois de saber do problema, os
EUA agiram pouco. A porta-voz do CDC, Kathryn Harben, disse que em um jantar na
noite da conferência da Cidade do México, o CDC informalmente se ofereceu para
ajudar os ministérios da saúde mesoamericanos. Ele ainda não fez isso, ela
disse, porque os ministérios ainda não apresentaram um pedido formal. O oficial
superior de saúde dos EUA na cúpula, o Dr. Howard K. Koh, secretário assistente
para a saúde do Departamento de Saúde e Serviços Humanos, se recusou a ser
entrevistado para esta reportagem.
Fique doente e perca seu emprego
O Engenho San Antonio e o Engenho Monte Rosa, as
maiores plantações da Nicarágua, agora testam o sangue dos trabalhadores para
medir a creatinina, uma substância química que indica a função renal.
Trabalhadores com níveis de creatinina elevados são demitidos, uma atitude que
as empresas dizem ser necessária para evitar trabalhadores doentes de terem
risco maior a sua saúde nos campos.
A demissão também tira dos trabalhadores os cuidados nos hospitais da
empresa e, muitas vezes, as pensões pagas pela empresa.
O Engenho San Antonio disse que reduziu o horário
de trabalho, forneceu mais água e solução hidratante e contratou assistentes
sociais para acompanhar os contratantes nos campos para assegurar uma
hidratação adequada. Atualmente, a jornada de trabalho não dura mais de oito
horas, por exigir trabalhos físicos, e a empresa oferece oito litros de água e
2700 ml de soro para hidratação por dia para cada trabalhador do campo, disse o
porta-voz Granera.
Em novembro de 2009, Maudiel Martinez embarcou em
ônibus da empresa em uma manhã e se dirigiu para os campos. Ele tinha 17 anos e
estava começando seu quarto ano no Engenho San Antonio. A época da colheita
estava prestes a começar e, como rotina, a empresa tinha realizado exames de
sangue para ver se os trabalhadores eram saudáveis o suficiente para o
trabalho de campo.
Martinez estava no ônibus quando ele recebeu a notícia: ele falhou no teste
de creatinina. Ele tinha a doença.
“Eu chorei pelo meu luto”, disse Martinez. “Eu era uma criança, com 17 anos
você ainda é um adolescente.”
O diagnóstico fez com que Martinez fosse
formalmente proibido de trabalhar para a empresa. Com sua família lutando
financeiramente e nenhum trabalho alternativo à vista, Martinez assumiu um nome
e um número da Segurança Social falsos e voltou a trabalhar na mesma área, para
empreiteiros independentes que, segundo ele, não se importaram com o fato dele
fornecer nome e registro de uma mulher.
Pelo menos alguns trabalhadores contratados ainda
estão saindo em turnos mais longos, mais arriscados. Um repórter da ICIJ, em
junho de 2011, observou que os ônibus pegando trabalhadores contratados do
Engenho San Antonio saíam às 5:25 da manhã e voltavam às 5:31 da tarde.
Trabalhadores disseram que cerca de 10 dessas horas foram gastas nos campos.
Um colapso nos campos
Em 10 de junho de 2011, Martinez foi designado
para cortar quatro fileiras de cana. Sua tarefa era despir as folhas da cana,
picá-las em pedaços, e amarrá-las em pacotes. Cerca de 40 peças compõem um
pacote. Para este trabalho, ganhou um córdoba por maço – menos de dez centavos
de reais.
Às 8:30 da manhã, ele havia cortado duas
fileiras. Ele estava começando a se sentir mal, mas continuou a cortar no calor
sufocante. “O sol estava muito forte, e eu tinha suado através da minha camisa
como se alguém tivesse jogado água sobre mim”, lembra Martinez.
No momento em que ele terminou de cortar as
fileiras, por volta das 11 da manhã, Martinez estava febril e com náuseas. Ele
descansou por 15 minutos, mas ainda tinha que amarrar os pedaços em pacotes.
Outro trabalhador veio para ajudar.
Martinez disse que terminou por volta das 13
horas, e o ônibus veio para levar os trabalhadores para casa cerca de meia hora
depois. Quando o ônibus chegou, Martinez se sentiu muito doente. “Entrei no
ônibus e eu não conseguia mais andar”, disse ele.
Já que Martinez era um trabalhador temporário,
ele não poderia ir para o hospital da empresa. Ele tomou o ônibus para casa e a
bordo começou a vomitar. O ônibus não parou. “Os caras só me deram a chance de
enfiar minha cabeça para fora da janela”, disse ele.
A estrada onde o ônibus o deixou é separada de
sua casa por um rio raso. Sua mãe e irmão o carregaram para atravessar o rio e
levá-lo para sua cama.
Logo após seu colapso, Martinez descobriu que
seus níveis de creatinina foram para cima. Ele passou dias sem apetite,
querendo apenas bebidas geladas para aliviar a sensação de febre.
“Se a morte está chegando, temos de nos resignar a esperar por ela”, disse
Martinez. “Renunciar a si mesmo significa esperar pelo que a doença está dando
a você. Porque você olha para mim e eu pareço normal agora, mas por dentro eu
sinto que estou queimando.”
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