Líderes da América Latina e África durante a II Cúpula América do Sul-África (2009) |
Por
Lincoln Secco.
Depois do
recrudescimento da Guerra Fria, da independência dos países coloniais e das
Revoluções Cubana e Argelina, os Estados Unidos (EUA) aumentaram seu grau de
intervenção no subcontinente latino americano para respaldar ditaduras civis e
militares. A sucessão de golpes e guerras nas colônias já evidenciava que a
Guerra era fria apenas do ponto de vista do então chamado primeiro mundo.
Este subperíodo da
história de “Nossa América” perdurou até que os efeitos da crise do petróleo
fizessem os EUA mudar a sua política de intervenção direta na América Latina e
permitisse a “redemocratização”. Os norte-americanos dispersaram seus
interesses e ficaram acuados depois da derrota no Vietnã, da redemocratização
do sul europeu, da presença soviética no Afeganistão e das revoluções no Irã e
na Nicarágua.
Inaugurou-se aqui um
período tumultuado de transições democráticas lideradas por forças políticas
que constituíam uma oposição legal aos regimes anteriores. Na verdade tais
oposições reconheceram a necessidade de pactuar com aqueles regimes.
Na Argentina, a derrota
militar na Guerra das Malvinas permitiu que Raul Alfonsin tentasse colocar os
militares no banco dos réus, mas isso só seria feito pelo casal Kirchner muito
tempo depois. No Chile, a transição foi controlada por Augusto Pinochet e só
mais tarde a tutela militar se viu ameaçada, ainda assim de maneira
insuficiente.
Os governos que
ascenderam nos anos oitenta foram derrotados pela hiperinflação e por sua
tibieza, embora incorporassem forças democráticas como na Argentina da União
Cívica Radical, no Brasil com o PMDB e no Peru com a APRA (Aliança Popular
Revolucionária Americana) no primeiro governo de Alan Garcia entre 1985 e 1990.
A transição fracassada
abriu espaço para governos que se caracterizaram pela valorização do câmbio (ou
às vezes pela dolarização), privatizações, abertura comercial e contenção das
greves. Alguns tentaram prolongar-se com mudanças constitucionais para aprovar
suas reeleições (Carlos Menen, Fernando Henrique Cardoso e Alberto Fujimori
tentaram isso em diferentes contextos). Tais governos foram politicamente
derrotados. Fernando Collor e Carlos Andrés Perez sofreram impeachment em 1992
e 1993 respectivamente. Os demais foram vencidos em eleições ou não conseguiram
eleger sucessores de seus partidos.
A eleição de Hugo
Chavez em 1998 abriu uma nova etapa pós-neoliberal. Mas o afixo “pós” ainda
revela uma impotência explicativa. Tratava-se na verdade de
variante do velho liberalismo econômico embora a população fosse levada
pelas oposições e pela crise econômica de 1998 a votar contra o assim chamado
“neoliberalismo”.
Os governos que vieram
depois foram considerados nominalmente progressistas. Mas eles carregam em si a
dubiedade de uma origem que não é de esquerda. Num primeiro grupo cuja
peculiaridade é a oratória de confronto com os Estados Unidos, Hugo Chávez e
Hollanta Humala eram oficiais superiores do Exército, participaram de rebeliões
contra o governo no período “neoliberal”, foram processados ou presos e,
depois, chegaram ao poder pelo voto com posições ligeiramente de esquerda sob
um manto nacionalista. Humala foi mesmo fiel escudeiro da política repressiva
de Alberto Fujomori.
Mas mesmo um civil como
Corrêa merece ser destacado. Ele não tem uma trajetória na esquerda e nem
popular. Oriundo da classe média na cidade portuária de Guaiaquil, ele estudou nos EUA e na
Europa. Sintomaticamente, uma parte dos presidentes citados é de uma mesma geração.
Correa nasceu em 1963, Humala em 1962, Morales em 1959 e Chavez em 1954.
O presidente de El
Salvador, Mauricio Funes (1959) não se enquadra na retórica mais radical dos
demais, teve o apoio da Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional e pertence
ao grupo de presidentes latino americanos de oratória moderada, embora todos
eles apresentem momentos de discurso rococó entremeado de influências
socialistas, cristãs ou da tradição indígena de resistência. Funes se aproxima
muito mais da influência de Lula.
Mujica (1934), Daniel
Ortega (1945) e Lula (1945) têm três características comuns: são de uma geração
mais velha; vieram de partidos ou movimentos de esquerda que tiveram alguma
consistência ideológica; e adotaram logo uma política pragmática. De todos
eles, só Lula foi um operário sindicalista e só o seu partido teve as
características de uma organização legal de massas, embora possamos incluir ao
lado do PT o Partido Socialista Chileno como agremiação histórica que sustentou
o mandato moderado da presidente Bachelet.
Manoel Zelaya, um
fazendeiro nascido em 1952, chegou tardiamente ao clube e geograficamente muito
próximo aos Estados Unidos, para sua infelicidade. Ele governou Honduras
inicialmente por pouco tempo até sofrer um golpe militar que parecia fora de
propósito na política oficial norte-americana. Mas Zelaya também é um político
misto entre os dois subgrupos acima definidos, posto que tenha retórica barroca
(ele se definiu como liberal pró – socialista), uma prática moderada, não tinha
partido estabelecido à esquerda, além de ser de uma idade intermediária. O
mesmo dir-se-ia do casal Kirchner que não só conquistou o apoio da tradição
peronista e atendeu as mães da Praça de Maio, como se posicionou num
nacionalismo extremo (no caso contra os militares torturadores e contra a
ocupação britânica nas Malvinas).
É possível dizer que
acima (ou abaixo) das diferenças citadas, todos os líderes referidos são
resultado de um mesmo processo de fracasso eleitoral do neoliberalismo
na América Latina e são a forma encontrada pelos movimentos sociais para
representar seus interesses no Estado sem prejuízo dos interesses do grande
capital. A forma é a de um compromisso que analistas de oposição chamaram
de populista, mas que na essência é a feição latino-americana do mesmo
pacto socialdemocrata que vigorou na Europa Ocidental antes. Aqui com
peculiaridades, obviamente. Não só a economia não suporta um mesmo Estado de
Bem Estar, como a base social do processo é muito mais complexa.
No Velho Mundo havia
uma classe operária industrial numericamente significativa (mesmo quando não
majoritária) que serviu de base aos governos de esquerda sociais democratas. Na
América Latina tivemos um rápido processo de urbanização numa fase de afirmação
tardia da industrialização periférica e sempre regionalmente concentrada.
Assim, as cidades se encheram não só de trabalhadores produtivos, mas daquilo
que os medievalistas chamam de “os pobres”. Entre 1950 e 2000 mesmo os países
que já eram mais urbanizados como a Argentina e o Uruguai passaram de uma taxa
de urbanização de 62,5 a 90,5% e de 81 a 91,8%, respectivamente. Mas foram
países como Bolívia (de 33,9 a 62,4), Equador (28,5 a 61,1) Paraguai (34,6 a
56,7), Peru (35,3 a 75,9) e Brasil (36,5 a 81,2) que experimentaram mudança mais
brusca. O caso venezuelano é exemplar a este respeito (47,9 a 90,5). (Dados em:
DEPUALC, 2009, CELADE – División de Población de la CEPAL, em
percentagem).
Evidentemente, países
que não experimentaram processos de esquerda no início do século XXI, como Colômbia
e, em certa medida, Chile também passaram por urbanização semelhante. Antonio
Gramsci fala de um fenômeno semelhante: “Na Itália o urbanismo não é um
fenômeno especialmente industrial. A maior cidade italiana, Napoli, não é
industrial. Todavia também nessas cidades existem núcleos populacionais
tipicamente urbanos”.
Caio Prado Júnior notou
no caso brasileiro que as forças que representam a base da nação são
inorgânicas ao sistema, ou seja, vegetam nos interstícios de uma produção
exportadora e indiferente ao mercado interno. Ora, o que os governos da América
Latina no século XXI começaram a fazer, ainda que por vias questionadas, é a
inclusão do inorgânico na economia formal. Mas por enquanto, através de um
mercado de trabalho precário e, especialmente pelo mercado de consumo, via
políticas sociais de grande impacto econômico em regiões carentes.
A uma base social
complexa, urbana e sem relação fixa e permanente com o mercado de trabalho
corresponderia um tipo de “populismo” ou “bonapartismo”? Mas o que define
exatamente tal situação?
Na América Latina os
novos governantes fazem as classes retroceder para formas corporativas de
atuação. Os movimentos sociais são divididos pela incorporação de lideranças no
aparelho de Estado e por políticas públicas que atendem parcialmente suas
bases. Os governos exprimem uma base social nos pobres urbanos com outro tipo
de consciência classe, muito menos afeito a uma tradição socialista.
Ora, toda liderança
política carismática é aparentemente periférica porque retrataria uma sociedade
sem as formas tradicionais do parlamento democrático e da democracia de
partidos. O que pode definir tal situação é um proletariado muitas vezes sem
fábrica, mas com atuação política nas cidades e, talvez, a figura do capo, do
homem ou instituição (Forças Armadas, por exemplo) providencial.
Com uma massa de
imigrantes ilegais em empregos precários e dispersos, mesmo a Europa não está
longe de uma situação assim. E os latino-americanos podem falar aos europeus: De
te fabula narratur. Ou seja: a fábula fala de ti, pois não é o Velho Mundo
que projeta o futuro da periferia e sim o contrário. Quando vimos líderes
europeus recentes se comportando como celebridades, nós podemos afirmar que
formas que supomos arbitrais e acima das classes não são uma idiossincrasia da
periferia. Elas são uma tendência inscrita no Estado Moderno. Sempre que a
forma de domínio político entra em crise e o “partido” das classes dominantes
se separa de seu partido parlamentar, a dominação pode ser personalizada num líder.
Criticar traços
contingentes do “bonapartismo” é aceitar como único paradigma a República
Parlamentar de tipo europeu, quando esta não passa de uma das formas
do regime anônimo da burguesia.
***
Lincoln Secco é professor de História Contemporânea na USP. Publicou
pela Boitempo a biografia de Caio Prado Júnior (2008), pela
Coleção Pauliceia. Colaborou para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras, durante o ano de 2011. Com esta coluna, o
autor se despede temporariamente de seus leitores aqui no Blog.
Publicado Originalmente em : http://boitempoeditorial.wordpress.com/2012/06/15/o-bonapartismo-periferico/
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