Antonio Carlos Mazzeo*
Não me estranha ler nas
páginas dos jornais manifestações de xenofobia e racismo. Elas estão por toda
parte, em todo o mundo. Ciganos na França e na Itália, árabes, romenos e
polacos em toda a Europa, latinoamericanos e negros nos EUA, índios no Brasil
central, negros e nordestinos no Brasil meridional, etc. Um velho fenômeno muito
discutido, mas pouco apreendido em suas raízes fundantes. O ponto nevrálgico e
"universal" dessa discriminação é que todas essas populações
discriminadas tem como origem países ou regiões miseráveis. São os
"Condenados da Terra", como diria Frantz Fanon, sem perspectivas,
abandonados à própria sorte, estigmas vivos, membros permanentes da
inclusão exclusora da ordem e da lógica do capitalismo.
Muitos intelectuais e ativistas de movimentos
contra o racismo e a discriminação apontam como elemento central do problema
duas questões correlatas: a cultura e a ideologia no que, em princípio, mas só
em princípio, estamos de acordo. A dominação política (aqui em sentido
ideo-cultural) sempre foi acompanhada por justificativas de superioridade, seja
"racial", seja "cultural". Toda forma social
hegemônica buscou legitimação afirmando-se como superior diante dos outros
povos. Até seus deuses eram maiores e mais poderosos que o dos outros! Rá do
Egito era superior à deusa Saushka (equivalente à deusa Ishtar mesopotâmica)
dos Hititas. Joevá, o deus vingador dos judeus (e depois dos cristãos),
superior ao panteon egípcio e romano, que fazia cair muralhas ao som das
trombetas dos anjos. No capitalismo, as manifestações ideo-culturais ocidentais
são apresentadas como "superiores" às outras, e assim por diante.
Aliás, foi esse cientificismo positivista, típico da ideologia da sociedade
capitalista, que justificou a assim chamada "teoria racial" dos
finais do século XIX e do século XX.
Desde o ensaio de Gobineau, Essai sur l'inégalité
des races humaines, de 1855, e dos escritos raciais do inglês Huston
Chamberlain, com seu livro Os fundamentos do Século XIX (Die
Grundlagen des Neunzehnten Jahrhunderts) de 1899, até o polêmico e racista
livro de Herrstein e Murray, The Bell Curve (A Curva de Bell
), de 1994, todas as tentativas de "justificar" a desigualdade entre
os seres humanos partiram de "bases" fundadas em aspectos raciais. A
descoberta do DNA e a comprovação de que não há variações na composição
genético-estrutural dos seres humanos, quer dizer, não existem raças
humanas mas sim as manifestações fenotípicas", ou seja, meramente
morfológicas, de aparência, não desestimulou os adeptos das "teorias das
raças", como atesta o livro de Murray e Herrstein. Ali, obscuramente tenta-se
comprovar que o isolamento de parte da espécie humana proporcionou, segundo os
autores, o desenvolvimento qualitativamente diferenciado da "raça
branca".
Numa entrevista à Folha de São Paulo
(05/11/2007), um dos autores do livro, o cientista político Charles Murray
assinala: “Pois a ciência está nos dizendo claramente nos últimos anos que,
ainda que o ser humano tenha a mesma imensa maioria de genes, aquele número
comparativamente pequeno que difere pode produzir diferenças muito grandes
entre grupos. Quanto à probabilidade de ter certas doenças, por exemplo, como a
Doença de Tay-Sachs nos judeus ou a anemia falciforme nos negros. Certamente
afeta a aparência física e não há razão para pensar que não tenha havido
pressões evolucionárias diferentes em relação à habilidade intelectual. Não
sabemos ainda se é verdade, mas certamente não há nenhuma razão para pensar que
não é verdade" (cit.). Mais adiante, Murray, justificando outro
teórico racista estadunidense, o prêmio Nobel de fisiologia e medicina, James
Watson - para quem os negros são inferiores aos brancos - , afirma que o erro
de Watson foi declarar aos jornalistas que "quem tem que lidar com
empregados negros sabe a diferença".(cit.)
A tal "prova" científica defendida
pelos "três amigos" (Murray, Herrstein e Watson) é a capacidade
intelectual diferenciada entre negros e brancos. Para tal, realizaram testes de
quoeficiente intelectual (QI) aplicados em negros e brancos, e entre
"tipos" diferenciados de brancos" (variante racial/de espécie?)
como os judeus. Independente de ser essa uma abordagem meramente ideológica,
ainda se quiséssemos buscar algum mérito científico nessas conclusões,
perderíamos muito tempo para nada. Em primeiro lugar, é sabido que testes de QI
tem por base um "tipo" de formação cultural e intelectual centrado
numa universalidade cultural relativa, porque centrada nos países ocidentais ou
de forte influência ocidentalizante. Dispersa e fragmentada em países
periféricos e onde predominam etnias distanciadas do mundo ocidental. Em segundo
lugar, e que se entrelaça com o primeiro argumento, há o fator social e de
classe, porque o acesso à cultura é sempre dificultado aos segmentos
proletarizados das sociedades contemporâneas. Isto é, esse tipo de teste
pressupõe uma pessoa que possua formação integralmente articulada com os
valores da sociabilidade capitalista em sua totalidade. Finalmente, essa
avaliação ignora o fundamental da construção da sociabilidade humana, sua PRAXIS
SOCIAL! É em sua praxis (o trabalho enquanto praxis humana)
que o homem, como ser social, se objetiva e se diferencia de si e dos
outros homens (como seres sociais ontológicos). Dai, as diferenças
estão centradas em suas formas societais, nas formas de organização da vida. Os
diferentes níveis de compreensão do mundo e de construção civilizatória criam
as condições e os "graus" de sofisticação científica e tecnológica
entre as formas de sociabilidade. Nunca o determinismo biológico!
Seguramente um indígena ou um negro não
familiarizado com o universalismo burguês seria reprovado num teste como esse.
Além do mais, as argumentações dos "três amigos" são recheadas de
senso comum preconceituoso e isso elevado à condição de "ciência", ou
melhor dizendo, de pseudo-ciência, torna-se arma perigosa para preconceitos e
intolerâncias de todos os matizes. Para amenizar suas concepções racistas, e
dentro de um racismo às avessas, Murray afirma que chegou à conclusão que os
judeus possuem um quoeficiente intelectual acima da média humana,
principalmente os asquenazes (judeus da Europa oriental). Esse tipo de
afirmação plena de ideologismos, ignora processos históricos, a luta pela e
contra a dominação e o "supremacismo" dos países dominantes,
principalmente na fase imperialista do capitalismo. Se notarmos a última
argumentação sobre os judeus asquenazes (que geraram intelectuais de grande
expressão, como Freud, Einstein e Mahler, entre outros) veremos que ela está
baseada numa pretensa "mutação genética", porque estes judeus
miscigenaram-se com os brancos europeus!
Nada diferente do que propunha nosso mestiço
racista de Saquarema Oliveira Viana, que já em seu Populações Meridionais
do Brasil, de 1920, propunha a miscigenação para "aprimorar" e
forjar uma "raça" brasileira e com isso, eliminar os aspectos
"degenerados" presentes no negro e nos índios! Com informações de uma
ciência genética incipiente, esse autor pregava uma sutil "limpeza"
racial através da preponderância genética branca, isto é, a teoria eugênica do
embranquecimento do brasileiro. O historiador Thomas Skidmore, em seu livro
Preto no Branco, lembra da boa impressão que tal teoria causou em Theodore
Roosevelt, futuro presidente estadunidense, em artigo publicado no jornal Correio
da Manhã onde afirmava que o projeto era a eliminação total do negro,
branqueando-o gradativamente através da miscigenação.
Ora, essa visão permeou todo o imaginário
intelectual brasileiro, pelo menos até a segunda metade do século XX e vem
permeando ainda hoje, mesmo que de forma mais "sofisticada" e
dissimulada. Não é nenhuma novidade que nas forças armadas e até em muitos
cursos de direito e de biologia, essas expressões ideológicas ainda são
visitadas. intelectuais como Nina Rodrigues, que apesar de ter uma proposta de
política "afirmativa" para o negro brasileiro, irmanava-se a Sylvio Romero
na visão cientificista da "inferioridade" do negro. Podemos dizer que
política e ideologicamente o primeiro confronto real contra a teoria do
branqueamento, então visão hegemônica na sociedade brasileira, foi realizada na
prática pelo PCB (Partido Comunista Brasileiro), ao lançar como candidato à
presidência da república, o negro e operário marmorista, Minervino de Oliveira,
através do Bloco Operário e Camponês (BOC), em 1930.
Outros intelectuais da época, também pagaram seus
tributos ao velho preconceito, gerado nas senzalas das casas grandes, mesmo que
tenham colocado questões relevantes sobre a problemática "racial"
brasileira, como Nina Rodrigues. Gilberto Freire publica seu Casa Grande e
Senzala, no mesmo ano em que Monteiro Lobato publica Caçadas de
Pedrinho, em 1933. Três anos depois, Sérgio Buarque de Holanda publica seu
Raízes do Brasil. Tanto em Gilberto Freyre como em Sérgio Buarque,
estão presente fortes traços da visão patrimonialista e escravista, como
resultado não só da sociabilidade escravista e agro-exportadora, como também de
seu núcleo ideológico legitimador. Para Freyre, o escravismo brasileiro foi
"brando" permitindo a "interação positiva" entre escravo e
senhor. Para Buarque de Holanda, a sociabilidade da escravidão gera o
brasileiro como "homem cordial"! Em 1928 é publicado Macunaíma,
de Mário de Andrade, romance que também apresenta problemas,quando avaliamos
sua caracterização do brasileiro como o índio aculturado e sem caráter
(nacional) e o da miscigenação racial e cultural do Brasil, considerada como
negativa, representada pelo imigrante italiano.
Se foi assim com esses intelectuais, se foram
produtos ideológicos de uma forma de sociabilidade, não poderia ser diferente
com Monteiro Lobato. Em 1918, sai a primeira edição de Urupês, onde está seu o
anti-herói Jeca Tatú, matuto caipira, caboclo preguiçoso que encarna o que há
de pior no país. Ai não é o negro mas o caboclo, mestiço de branco com índio,
que é o alvo da crítica, pelo menos até a década de 1920, quando pesquisas
científicas demonstram que a malfadada preguiça do caboclo Jeca Tatú era
resultado de doenças várias, presentes no Vale do Paraíba. Imediatamente Lobato
escreve um prefácio para seu livro pedindo desculpas a seu personagem, dizendo
não saber o motivo real de sua indolência. Seu personagem será utilizado por
campanhas sanitaristas de combate as pragas endêmicas em todo o país. Tanto em
Urupês como em Caçadas de Pedrinho (1933), estão presentes as contradições de
uma intelligentzia hegemônica moldada por uma sociedade que pagava
seus tributos a séculos de escravidão e de autocracia oligárquica. Os
estereótipos sobre a população não branca, negros, mestiços e índios grassavam
em nossa sociedade. Havia também os estereótipos dos imigrantes que chegavam. O
italiano comilão, briguento e agitador, o polaco bêbado, o espanhol miserável
de sapatos rotos, as lituanas "vagabundas e prostitutas" e tantos
outros.
Mas se temos estereótipos preconceituosos nas
obras de Lobato, e certamente encontraremos muitos deles, ali também estão
balanços críticos de um voraz processo de modernização "pelo alto",
típico do capitalismo brasileiro. Em Urupês, e Negrinha estão as denúncias de
uma sociedade de burgueses parasitários e de um Estado burocrático, de abusos
contra a infância, do preconceito racial. Lobato em suas obras
"adultas", desvela um Brasil que é violento contra as mulheres e
contra os imigrantes. Temos em Lobato um homem de seu tempo, com as
contradições de seu tempo, com as limitações de um intelectual preocupado com o
nacional, mas que nunca chegou a ser intelectual nacional-popular,
como diria Gramsci. A ruptura e a construção de uma intelectualidade de caráter
nacional-popular, afinada com o projeto dos trabalhadores começará a ser
organizada a partir de intelectuais orgânicos do movimento operário e popular,
como Astrojildo Pereira, Octávio Brandão, Nelson Werneck-Sodré e Caio Prado Jr.
O que depreendemos dessas breves considerações é
que obras de importantes intelectuais nos ajudaram compreender o Brasil e a construir
elementos analíticos para lutar contra o preconceito, a exploração dos mais
fracos e contra o obscurantismo. Tentar censurar Lobato, ou qualquer produção
intelectual, estejamos de acordo ou não com ela é cair no obscurantismo. É
travar a luta da emancipação humana com "argumentos" de força, os
mesmos da inquisição ou do nazi-fascismo. Não se combate a ideologia do racismo
com racismo "qualificado". Não se liberta aprisionando. A liberdade e
a crítica devem ser nossas armas fundamentais, se quisermos construir uma
sociabilidade superior a esta capitalista.
*Antonio
Carlos Mazzeo é membro do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro -
PCB.
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