Che não foi
apenas um heroico guerrilheiro, um lutador que entregou sua vida pela
libertação dos povos da América Latina, um dirigente revolucionário que fez
algo sem precedentes na história; deixou todos seus cargos para retomar o fuzil
contra o imperialismo. Ele foi também um pensador, um homem de reflexão
que nunca deixou de ler e escrever, aproveitando qualquer pausa entra duas
batalhas para ter à mão caneta e papel. O seu pensamento faz dele um dos mais
importantes renovadores do marxismo na América Latina, talvez o mais importante
desde José Carlos Mariátegui.
Curiosamente,
a maioria das biografias sobre o Che recentemente publicadas não tratam deste
aspecto essencial de sua personalidade. Até os autores simpáticos à sua figura
não compreendem ou menosprezam sua obra marxista. Por exemplo, no belo livro de
Paco Ignacio Taibo II [Ernesto Guevara, também conhecido como Che], os
escritos de Che quando da discussão sobre a lei do valor são postos de lado
como um “labirinto de citações” inspirado em um “marxismo bíblico”. O
jornalista francês Pierre Kalfon considera o brilhante ensaio “O socialismo e o
homem em Cuba” como “um amontoado de fórmulas” inspiradas por “um dogmatismo de
outros tempos”, isto é, pelo “palavrório marxista tradicional”!
Ora, se se
ignora ou se despreza o pensamento de Che, suas ideias, seus valores, sua
teoria revolucionária, seu marxismo crítico, como compreender sua coerência de
vida, as principais razões de suas atitudes, a inspiração política/moral de sua
prática, o fogo sagrado que o movia?
Diferentemente
da maioria dos dirigentes da Revolução Cubana, Ernesto Guevara já possuía uma
formação marxista antes de aderir ao Movimento 26 de julho, no México, em 1955.
Ele descobriu o marxismo não apenas lendo Marx – graças à biblioteca de sua
companheira Hilda Gadea e de seu amigo mexicano Orfila Reynal – e Lenin, ou os
romances de Nazim Hikmet, Miguel Ángel Asturias e Jorge Icaza, mas também por
meio de sua experiência política na Guatemala, quando do golpe contra Arbenz,
vítima da CIA, da United Fruit e da traição das forças armadas.
Ele não
chegou ao marxismo pela própria experiência revolucionária, mas tratou de,
prontamente, decifrá-la recorrendo a referências marxistas, e, dessa forma, foi
o primeiro a captar plenamente o significado histórico-social da Revolução
Cubana, proclamando, em julho de 1960, que ela “descobriu também, por seus
próprios métodos, os caminhos demonstrados por Marx”[3]Porém,
algum tempo antes, em abril de 1959, ele já previa o rumo que o processo cubano
tomaria depois da queda da ditadura de Batista: trata-se – dizia Che em
entrevista a um jornalista chinês – de “um desenvolvimento ininterrupto da
revolução”, até abolir “a ordem social existente” e seus “fundamentos
econômicos”.[4]
De 1959 até
sua morte, o marxismo de Che evoluiu. Ele se distanciou cada vez mais das
ilusões iniciais sobre o modelo soviético de socialismo e sobre o estilo
soviético – isto é, stalinista – de marxismo. Percebe-se, cada vez mais
explicitamente, sobretudo em seus escritos a partir de 1963, a busca de um
modelo alternativo, a tentativa de formular outra via ao socialismo, distinta
dos paradigmas oficiais do “socialismo realmente existente”. Seu assassinato
pelos agentes da CIA e por seus lacaios bolivianos, em outubro de 1967,
interrompe um processo de amadurecimento político e de desenvolvimento
intelectual autônomo. Sua obra não é um sistema fechado, um modelo acabado que
possui resposta a todas às perguntas. Sua reflexão ficou incompleta em várias
questões, como, por exemplo, a democracia sob a planificação econômica e a luta
contra a burocracia.
O marxismo de Che se distingue das variantes
dominantes em sua época; é um marxismo antidogmático, ético, pluralista,
humanista, revolucionário. Alguns exemplos nos permitem ilustrar estas
características.
Antidogmático: Marx, para Che, não era um papa ungido pelo dom
da infalibilidade. Em suas “Notas para estudo da ideologia da Revolução Cubana”
(1960), ele ressalta: mesmo sendo um gigante do pensamento, o autor d’O
capital cometeu erros que podem e devem ser criticados. Por exemplo, no que
toca à América Latina, sua interpretação de Bolívar ou a análise sobre o México
que realiza junto com Engels, “em que admite determinadas teorias sobre raças
ou nacionalidades que são hoje inadmissíveis”.[5]
Entretanto, os fenômenos de dogmatização
burocrática do marxismo no século XX são mais graves que os equívocos de Marx;
em várias oportunidades, Guevara se queixou da “escolástica que freou o
desenvolvimento da filosofia marxista” – uma evidente referência ao stalinismo
– e que impediu sistematicamente, inclusive, o estudo do período de construção
do socialismo.[6]
Ético: A ação revolucionária é inseparável de certos
valores éticos. Um dos exemplos é o trato aos prisioneiros da guerrilha: “A
clemência mais absoluta o possível com os soldados que combatem cumprindo, ou
que creem cumprir, seu dever militar (...) Os sobreviventes devem ser postos em
liberdade. Os feridos devem receber cuidados utilizando todos os recursos
disponíveis”.[7]Um
incidente da batalha de Santa Clara ilustra o comportamento de Che: em resposta
a um companheiro que propôs a execução de um tenente do exército, feito
prisioneiro, diz Guevara: “Você acha que somos iguais a eles?”[8]
A construção do socialismo também é inseparável de
determinados valores éticos, diferentemente do que advogam as concepções
economicistas – de Stalin a Charles Bettelheim – que levam em conta apenas “o
desenvolvimento das forças produtivas”. Em sua famosa entrevista ao jornalista
Jean Daniel (julho de 1963), Che defendia, no que já se constituía uma crítica
implícita ao “socialismo real”, que: “O socialismo econômico sem a moral
comunista não me interessa. Lutamos contra a miséria, mas ao mesmo tempo contra
a alienação (...). Se o comunismo desconsidera os fatos da consciência, poderá
ser um método de distribuição, mas não se constitui como uma moral
revolucionária.[9]
Pluralista: Apesar de Che não ter formulado uma concepção
acabada da democracia socialista, ele defendia a liberdade de debate no campo
revolucionário e o respeito à pluralidade de opiniões. O exemplo mais marcante
é sua resposta – em um informe de 1964 a seus companheiros do Ministério da
Indústria – à crítica de “trotskismo” feita a ele por alguns soviéticos: “Com relação
a isso, creio que ou temos a capacidade de destruir com argumentos a opinião
contrária ou devemos deixá-la se expressar (... ). Não se pode destruir uma
opinião por meio da força, pois isso interrompe todo livre desenvolvimento da
inteligência. Além disso, há uma série de aspectos do pensamento de Trotsky que
pode ser levada em conta, ainda que, como acredito, ele tenha se equivocado em
seus conceitos fundamentais e sua ação posterior tenha sido errônea (...)”[10]
Revolucionário: Na América latina, durante anos e décadas, o
marxismo serviu como justificativa a uma política reformista de subordinação do
movimento operário à aliança com uma suposta “burguesia nacional”, com vistas a
uma suposta “revolução democrática, nacional e antifeudal” ([Victorio]
Codovilla, para mencionar apenas um nome simbólico de todo um sistema político
de corte stalinista). Em sua “Mensagem à tricontinental” (1966), Guevara cortou
o nó górdio que atava pés e mãos dos explorados: “As burguesias autóctones
perderam toda sua capacidade de oposição ao imperialismo – se alguma vez a
tiveram – e constituem apenas sua retaguarda. Não há mais mudanças a serem
feitas: ou revolução socialista ou a caricatura de revolução”[11]
Todos os escritos e discursos marxistas de Che, de
1959 até sua morte, seja sobre a realidade latino-americana, sobre a guerra de
guerrilhas, sobre a luta internacional contra o imperialismo, sobre os
problemas econômicos de Cuba, possuem um objetivo central, concreto e urgente:
a transformação revolucionária da sociedade.
Insistiu-se muito sobre a teoria do foco
guerrilheiro nos escritos de Che. Mas ele sabia que a revolução social é uma
tarefa não apenas de uma – indispensável – vanguarda, mas das grandes maiorias:
são “as massas (as que) fazem a história como um conjunto consciente de
indivíduos que lutam por uma mesma causa (...) que lutam para sair do reino da
necessidade e passar ao reino da liberdade”.[12]
Humanista: A leitura de Marx feita por Che é totalmente
distinta da vulgata estruturalista, “anti-humanista teórica”, althusseriana,
que tanto se difundiu na América Latina nos anos 1960-1970. Referindo-se ao Capital,
ele escreve: “O peso deste monumento da inteligência humana é tal que nos fez,
frequentemente, esquecer o caráter humanista (no melhor sentido da palavra) de
suas inquietudes.
A crítica ao capitalismo – sociedade na qual “o
homem é o lobo do homem” –, a reflexão sobre a transição ao socialismo, a
utopia comunista de um homem novo: todos os temas centrais da obra marxista de
Che têm fundamento no humanismo revolucionário. Sua formulação mais profunda,
mais original e mais pessoal está no ensaio “O socialismo e o homem em Cuba”
(1965): “Deixe-me dizer, correndo o risco de parecer ridículo, que o verdadeiro
revolucionário é guiado por grandes sentimentos de amor”. Sem o amor aos povos,
o amor à humanidade, sem estes sentimentos generosos “é impossível pensar num
revolucionário autêntico”.[13]
A expressão concreta, prática, ativa do humanismo
revolucionário é o internacionalismo. Em uma conversa com jovens comunistas, em
1962, Guevara insistia que o revolucionário deve “sempre se colocar os grandes
problemas da humanidade como problemas próprios”, isto é, “deve se sentir
angustiado quando, algum canto do mundo, um homem é assassinado, e até o ponto
de se sentir entusiasmado quando, em algum canto do mundo, se levanta uma nova
bandeira de liberdade”.[14]
Para além de seus erros táticos, ou mesmo estratégicos, o compromisso pessoal
de Che com a revolução no Congo e na Bolívia, arriscando sua vida, é a tradução
destas palavras em atos.
O mundo – e a América Latina – passaram por muitas
transformações nos últimos 30 anos. Não se trata de olhar para trás e procurar,
nos escritos de Che, a resposta a todos nossos problemas atuais. Mas é fato que
os povos continuam, hoje como ontem, sob a dominação do imperialismo; que o
capitalismo, em sua forma neoliberal, continua produzindo os mesmos efeitos:
injustiça social, opressão, desemprego, pobreza, mercantilização dos espíritos.
O que é ainda pior: o capital financeiro multinacional nunca exerceu um poder
tão aplastante, tão sombrio sobre todo o planeta. O capitalismo nunca
conseguiu, como o faz agora, afogar todos os sentimentos humanos nas “águas
glaciais do cálculo egoísta”. Por isso, necessitamos, hoje mais que nunca, do
marxismo do Che, de um marxismo antidogmático, ético, pluralista,
revolucionário, humanista.
No século XXI, quando os ideólogos neoliberais –
que ocupam hoje a cena política e cultural – já estiverem esquecidos, as novas
gerações ainda se recordarão do Che, e sua estrela continuará iluminando a luta
da humanidade por sua emancipação.
[2]Diretor de
pesquisas no CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique) e dirige um
seminário na École des Hautes Études en Sciences Sociales e autor de O
pensamento de Che Guevara, Editora Expressão Popular.
[3]Discurso de
28 de julho de 1960, “Para o primeiro Congresso Latino-americano de
Juventudes”, in: Ernesto Che Guevara, Obras 1957-1967, La Habana:
Casa de las Americas, 1970, v. 2, p. 392. Daqui em diante esta edição será
citada como Casa.
[5]“Notas para
estudo da ideologia da Revolução Cubana” in: Che Guevara – Política,
São Paulo: Expressão Popular, 2011, p. 115.
[6]Casa, v. 2, p.
190. Em um discurso, em abril de 1962, sobre Anibal Escalante e sua tentativa
de stalinização do Partido Revolucionário Cubano, Guevara destaca a íntima
relação entre alienação das massas, burocratismo, sectarismo e dogmatismo. In:
Ernesto Guevara, Obra revolucionaria, Mexico: Era, 1967, p. 333.
[8]Citado en
Paco Ignacio Taibo II, Ernesto Guevara,também conhecido como Che, São
Paulo: Expressão Popular, 2011, p. 261.
[11]Casav. 2, p.
589. É impressionante o paralelo com a tese de José Carlos Mariátegui, em 1929:
“À América do Norte plutocrática, imperialista só se pode opor de maneira
eficaz uma América Latina ou ibérica socialista. (...) O destino destes países,
dentro da ordem capitalista, é o de ser simplesmente colônias”. (J. C.
Mariátegui, El proletariado y su organizacion, Mexico, Grijalbo, 1970,
p. 119-121.
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