A cada 45 dias, um trabalhador precarizado da Companhia
Energética de Minas Gerais morre no trabalho
02/04/2012
Joana Tavares
de Belo Horizonte (MG)
Milton Marcelino demorou 18 anos para receber indenização por acidente de trabalho - Foto: Joana Tavares |
José Ribamar, Crevaldo Rosário,
Osmar Vieira, Hiago Marcos, Rival Gomes, José Itamar, João Batista, Raimundo
Ribeiro, Thiago Matias, Lucas Rodrigues. Esses homens eram trabalhadores
terceirizados da Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig), considerada a
maior empresa de distribuição elétrica do Brasil. A empresa, que atua no ramo
de geração, transmissão e distribuição de energia, é a décima maior companhia
brasileira de capital aberto, segundo ranking da revista estadunidense Forbes.
Em abril de 2011, a Cemig foi uma das 37 empresas brasileiras que figuraram na
lista, e subiu 11 posições no ranking mundial, alcançando a 671ª posição.
O lucro obtido pela empresa em 2010
impressiona: R$ 2,3 bilhões. A extensão de seus negócios também: segundo
informações da própria Cemig, ela atende 33 milhões de pessoas em 805
municípios de Minas Gerais e do Rio de Janeiro (em 2009, a companhia mineira se
tornou controladora da Light), possui a maior rede de distribuição elétrica da
América do Sul, com mais de 460 mil quilômetros de extensão. Atua ainda no
Chile, atende 25% dos consumidores livres do Brasil, participa de 100 empresas
e possui 114 mil acionistas em 44 países. Em seu folder institucional bilíngue,
informa que possui 8.859 empregados, cada um responsável por atender 797
consumidores.
O que não consta nos dados oficiais
da empresa é o número de 18 mil trabalhadores terceirizados, que prestam
serviços de atividade-fim para a Cemig. José e Crevaldo morreram em serviço
neste ano. Osmar, Hiago, Rival, José, João, Raimundo, Thiago e Lucas morreram
em 2011. Eles compõem a triste estatística não divulgada por “um dos mais
sólidos e importantes grupos do segmento de energia elétrica do Brasil”: a cada
45 dias, um trabalhador precarizado da Cemig morre no trabalho.
O coordenador geral do Sindicato
Intermunicipal dos Trabalhadores na Indústria Energética de Minas Gerais e dos
Trabalhadores da Indústria de Gás Combustível no Estado de Minas
(Sindieletro/MG), Jairo Nogueira Filho, explica que essa estatística vem desde
1999, devido a um processo de precarização do trabalho, a partir da autorização
para terceirizar o serviço, abrindo caminho para demissões, contratações mais
baratas e pavimentando o caminho para a privatização.
“Esse trabalhador tem baixos
salários, um treinamento que não é o adequado, e trabalha por produtividade, ou
seja, quanto mais serviço ele fizer, mais vai ganhar. Isso vai contra a lógica
do setor elétrico, que é um setor de alto risco. Não dá pra brincar com energia
elétrica. Aí começou a carnificina”, ressalta Jairo.
O desrespeito ao trabalhador vai
além da falta de treinamento. A médica do trabalho Ana Lúcia Murta, com 17 anos
de experiência na área e cinco especificamente no setor elétrico, aponta que há
alojamentos em péssimas condições de acomodação, de conforto, de higiene;
uniformes e equipamentos inadequados, falta de cumprimento da legislação
trabalhista e jornadas que ultrapassam o limite legal, devido à pressão de
produtividade.
“Então temos esse quadro: pessoas
com falta de conhecimento técnico, com baixo nível de escolaridade, executando
uma tarefa de alto risco – porque energia elétrica não tem cheiro, não tem cor,
não faz barulho – e executando isso com pressa, com pressão por produtividade,
com cobrança de metas, com uma jornada além do que o corpo dá conta”, enfatiza
Ana Lúcia, que também é assessora da secretaria de saúde do trabalhador do
Sindieletro/MG. “Isso é uma questão séria pelo tamanho do setor elétrico na
economia. Se formos pensar que estamos no século 21, em um país que tem se
tornado uma das maiores economias do mundo, é o cúmulo do desrespeito com o ser
humano”, denuncia.
Ana Lúcia refuta o argumento que
coloca a culpa pelos acidentes no trabalhador. “Os acidentes têm história. Não
vêm do nada, não acontecem por acaso, não é destino. O acidente tem princípio,
meio e fim, é socialmente determinado, tem um impacto social, jurídico e
médico. Ele está relacionado com a organização do trabalho, com a gestão. A
forma como uma empresa determina como vai gerir seu trabalho determina como o
acidente acontece”, observa. Ela explica que os acidentes vão tendo proporções
cada vez maiores se não se resolvem os problemas de gestão.
A médica aponta ainda que o
indivíduo é o elo mais frágil de um sistema, e não pode ser responsabilizado
pelo processo de produção, maior do que ele. “Ninguém quer morrer aos 23 anos,
ou perder perna, braço, sustentar quatro filhos com uma miséria de pensão de
benefício por invalidez do INSS. É muito cruel e perverso achar que as pessoas
vão morrer e vão perder membros porque são irresponsáveis, inconsequentes. Há uma
história cultural e organizacional que não é levada em consideração”, reforça.
Milton Ribeiro Marcelino tinha 23
anos quando trabalhava para a Contemporânea Engenharia, empresa contratada pela
Cemig, em Vespasiano, região metropolitana de Belo Horizonte. Estava
trabalhando na substituição em um poste quando tomou um choque elétrico em uma
linha de alta tensão. Perdeu as duas pernas e o braço esquerdo. Ele conta que a
empresa para a qual trabalhava não lhe ofereceu nenhuma assistência. Até sua
primeira cadeira de rodas foi comprada por uma vaquinha realizada pelo
sindicato, que o apoiou desde o início.
A Contemporânea faliu e Milton
passou a processar a Cemig. Em 2008, a empresa foi considerada “responsável
solidária” pelo acidente e condenada a pagar uma pensão vitalícia retroativa e
indenização. “Ela recorreu três vezes e todas três vezes ela perdeu. Depois ela
teve que me pagar o que eu tinha direito. Não estava conseguindo esperar mais,
dezoito anos não são dezoito dias, né?”, conta Milton, que acabou fazendo um
acordo de indenização de R$ 309 mil, abaixo do valor solicitado inicialmente.
Recebeu o primeiro mês de sua pensão em dia. Os outros dez
meses, não. Seu advogado teve que entrar com ação para receber os atrasados. Os
outros cinco meses também atrasaram, e foi necessária nova intervenção
jurídica. O valor atual de sua pensão é de R$ 800.
“Acho que a Cemig tem que dar mais
assistência ao pessoal que sofre acidente hoje em dia. Muitos morrem e a Cemig
chega e joga um pano por cima, e a família tem que lutar anos para ter seus
direitos. Ninguém é animal não. Como a pessoa que presta serviço pra ela pode
ser tratada assim? A pessoa tem um problema de saúde e já não presta. Tem que
dar assistência mais rápido para não esperar 18 anos como esperei”, afirma Milton.
Hoje com 44 anos, Milton não se furta de contar sua experiência para quem
quiser ouvir. Entende que tem esse papel para ajudar seus amigos, que podem
estar correndo riscos neste momento enquanto trabalham de forma precarizada
para a Cemig.
Um estudo realizado pelo
Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese)
em 2010 demonstra que mais da metade da força de trabalho no setor elétrico
brasileiro (58,3%) era composta, em 2008, por trabalhadores terceirizados.
Neste ano de referência, a taxa de mortalidade da força de trabalho entre os
terceirizados foi 3,21 vezes superior em relação ao quadro próprio das
empresas.
Tarifa cara e privatização
O estudo apresentado pelo Dieese
também afirma que o aumento da terceirização do setor elétrico se deu ao longo
da década de 1990, em um contexto de transferência do controle acionário do
setor público para o setor privado, amparado numa lógica de redução de custos,
incidindo diretamente sobre os trabalhadores.
Jairo Nogueira Filho, coordenador
do Sindieletro, explica que houve uma tentativa clara de privatização da Cemig
em 1995, durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso e sob o governo de
Eduardo Azeredo, ambos do PSDB. “As concessões foram renovadas em 95, com o
adendo de autorização de terceirização do setor elétrico, já pensando na
privatização do setor”, aponta.
Na época, representantes do grupo
Opportunity, controlado por Daniel Dantas, e de outras empresas estrangeiras
haviam comprado 30% das ações da Cemig, com recurso do BNDES, e passaram a ter
o comando da empresa. O governador Itamar Franco, sucessor de Azeredo, reverteu
na Justiça esse processo de privatização e anulou o controle do grupo. Aprovou
ainda uma Proposta de Emenda à Constituição (a PEC 50), que impedia o processo
de privatização das estatais, como a Cemig e a Copasa. Relator da medida, o
deputado estadual do PT Rogério Correia, explica que incluiu na emenda a
necessidade de votação de dois terços dos deputados e a realização de um
referendo popular para aprovar a venda das empresas.
No entanto, ele denuncia que o
ex-governador Aécio Neves (PSDB) fez uma manobra para realizar o que chama de
“privatização branca”. “O que o governador Aécio fez? Incluiu a Andrade
Gutierrez, através da compra da Light no Rio, e estabeleceu um novo acordo de
acionistas, consolidado pelo atual governador Antonio Anastasia, com os pontos
que Itamar tinha conseguido desfazer. A Cemig passa hoje 50% dos dividendos
para empresas minoritárias, através de um acordo aprovado por acionistas. No
meu entender, isso é contrário ao que a Justiça determinou”, aponta.
Jairo Nogueira reforça que o
Sindieletro – que não pode representar diretamente os terceirizados por uma
manobra das empresas, mas segue denunciando essa realidade e lutando por seus
direitos – tenta demonstrar ao governo, à Cemig e à sociedade que a única forma
de acabar com os acidentes é efetivando todos os terceirizados, criando assim
18 mil empregos de qualidade. “Acidentes de choque elétrico e queda com o
pessoal próprio da Cemig tem mais de 10 anos que não acontece. Tentamos mostrar
para a empresa a importância de contratar todos os terceirizados, mas não há
abertura em relação a isso. Ela fala que essas mortes não são sua
responsabilidade, que ela contrata serviços e não pessoas”, afirma.
Outra campanha encampada pelo
sindicato é para demonstrar que, no mesmo período em que aumentaram as
terceirizações, piorou o serviço para a sociedade e aumentou o preço da conta
de luz. “A tarifa de Minas ainda é das mais caras do Brasil. Cobra-se 43% de
imposto embutido na conta. Em São Paulo, por exemplo, essa taxa é de 12%”,
aponta. “A empresa continua insistindo que vai manter a terceirização, que isso
aumenta seu lucro. Esse lucro é distribuído para os acionistas, em grande parte
estrangeiros. Há um interesse financeiro, e não uma preocupação com a vida”,
complementa.
Procurada pelo Brasil
de Fato, a Cemig não havia retornado até o fechamento desta
edição.
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