Não adianta o governo federal continuar esse antigo jogo de
empurra com os demais entes da federação, a respeito de quem seria o
responsável por pagar bons salários aos professores. A absoluta maioria dos
mais de 5 mil municípios e dos estados não tem como pagar o salário que um novo
modelo requer.
Paulo Kliass
O desenvolvimento da vida do ser
humano em sociedade fez com que surgisse uma série de setores e atividades,
cuja avaliação de critérios de eficiência não pode ser realizada com o
instrumental tradicional de viés economicista, de abordagem obtusa e meramente
quantitativa. Esse é o caso típico dos chamados “bens públicos”, como a saúde,
a educação, a previdência social, o saneamento, a segurança pública e tantos
outros.
Exatamente por sua natureza
particular e seus efeitos específicos para o conjunto da sociedade,
historicamente quase sempre coube ao Estado se responsabilizar por oferecer
esse tipo de bens e serviços. As formas de institucionalização desses setores
podiam variar segundo cada realidade concreta de país e de setor (administração
direta centralizada ou descentralizada, empresas estatais, autarquias, etc),
mas sua natureza pública era quase a regra geral.
Mercantilização dos
serviços públicos
Durante as décadas de hegemonia
do pensamento neoliberal, a sanha privatista passou a atuar também no interior
de tais setores, sob o duplo argumento da falsa carência de recursos
orçamentários e da suposta ineficiência do Estado em cumprir com suas missões
na esfera do econômico.
Assim, o conjunto da sociedade
sairia beneficiada com o processo radical de mercantilização da produção e da
oferta desses bens. A panacéia adotada pelo mundo afora foi a privatização.
Como o modelo de referência era a transformação de cada setor em um mercado
idealizado, tudo deveria ser reduzido a termos como fatores de oferta, fatores
de demanda e preços. Até os dias de hoje, estamos todos a sofrer os enormes
prejuízos de tal opção.
No caso brasileiro, o
sucateamento da capacidade financeira e administrativa do setor público ocorreu
simultaneamente ao processo de transferência de ramos inteiros para que a
oferta dos bens e serviços estatais passasse a ser realizada pelo setor
privado. Esse processo provocou substancial perda de qualidade do serviço
oferecido e uma restrição crescente de seu acesso pela maioria da população.
Isso porque o que antes era considerado um direito universal associado à
condição de cidadania, passa agora a ter como requisito de acesso o pagamento
do serviço sob a forma monetária.
Não por acaso, os dados
estatísticos da ONU e demais organizações multilaterais colocam o Brasil bem
atrás de sua posição inicial, quando o critério utilizado deixa de ser apenas o
tamanho PIB. Saímos de sexta posição para lá de octagésima quando são
introduzidos variáveis como distribuição de renda, saúde e educação, por
exemplo.
Sucateamento da
educação pública
O processo ocorrido na área da
educação em nosso País, ao longo das últimas quatro décadas, é bastante
emblemático. Paulatinamente, o Estado foi reduzindo sua presença e a qualidade
de sua ação na área do ensino fundamental e médio, ao mesmo tempo em que a
tendência à mercantilização possibilitou a formação de um amplo setor
educacional privado. Um conjunto enorme de escolas e conglomerados educacionais
regidos, quase que exclusivamente, pelas regras capitalistas de mercado.
Um importante golpe de
misericórdia veio com o abandono das famílias de classe média da opção pela
escola pública e a crença de que ensino de qualidade estaria associado à escola
privada. A sociedade acabou por perder um significativo instrumento de pressão
sobre governos e os políticos em geral, no sentido de exigir melhores condições
de ensino. Dentre tantas consequências negativas, vale ressaltar também um novo
foco orientador da missão da escola para as crianças e os jovens. Abandonou-se
a tradição da formação ampla dos indivíduos e da transmissão do conhecimento.
Uma boa escola passa a ser considerada aquela que “garante o sucesso de meu
filho no vestibular” e o posterior ingresso no ensino superior.
A realidade da rede pública, via
de regra, foi de perda ainda maior de qualidade. A tão sonhada descentralização
para estados e municípios não foi acompanhada dos recursos orçamentários
necessários e a administração pública federal praticamente se desincumbiu de
zelar pela qualidade do ensino oferecido na ponta do sistema. Os resultados
podem ser sentidos em todos os tipos de avaliações realizadas. Alunos mal
formados, índices expressivos de analfabetismo funcional, professores
desmotivados, estrutura física e de apoio administrativa deficiente.
A lógica da contenção das
despesas orçamentárias terminou por contaminar também a área da educação. Nem
mesmo as reivindicações básicas dos setores historicamente ligadas à área têm
sido atendidas, a exemplo de índices mínimos do PIB ou do orçamento para educação.
Trata-se de tentativas de incorporar à realidade brasileira padrões de países
que lograram dar um salto à frente, em termos de acesso e melhoria da educação
de seus cidadãos.
Urgência de um novo
modelo
Mas é importante ressaltar que
apenas o índice quantitativo não basta. O nosso modelo educacional é antigo e
viciado em padrões de acomodação. Tenta-se justificar a carência na qualidade
da formação porque os salários dos professores são baixos. Os mecanismos do
tipo “aprovação automática” acabam tendo alguma aceitação sob o argumento da
pouca estrutura para atender ao volume de alunos. E por aí vai.
Ora, já passou da hora para que a
sociedade e os governos passem a encarar a educação efetivamente como
prioridade nacional. É sabido que a lógica político-eleitoral acaba priorizando
aquilo que o jargão incorporou como “gestão de obras”. A maioria dos
parlamentares e dos governantes têm como meta sua reeleição nas próximas
eleições. Assim, não consideram “eficiente”, segundo essa ótica estreita e utilitarista,
investir em políticas públicas que não lhe dão visibilidade imediata ou no
curto prazo. O caso clássico e extremo desse tipo de enfoque são os
investimentos em água e esgoto, que ficam invisíveis e correm por baixo do
solo. Melhor seria construir pontes, asfaltar ruas, construir hospitais e até
mesmo escolas. Mas sempre da perspectiva da “obra pronta” e não do modelo de
saúde ou de educação a ser adotado.
A tão necessária “revolução na
educação” começa, com certeza, com a alocação de mais verbas para a área. Mas
os seus efeitos reais só serão sentidos nas próximas gerações. Infelizmente, e
isso é importante reconhecer, a qualidade das anteriores e das atuais já está
seriamente comprometida. Daí porque a questão da qualidade dos professores seja
essencial. Atualmente, com os baixos salários oferecidos pela rede pública, o
fato é que a grande maioria dos bons profissionais formados nas faculdades vão
buscar outras opções de emprego. Poucos são os que ficam realmente por uma
“abnegação da causa”. E essa realidade deve ser enfrentada de frente e com
coragem. Os salários dos professores do ensino médio e fundamental devem ser de
outro patamar.
E não se trata de um índice maior
ou menor nesta ou naquela campanha salarial. Não! A questão é estrutural. Não adianta
o governo federal continuar esse antigo jogo de empurra com os demais entes da
federação, a respeito de quem seria o responsável por pagar bons salários aos
mestres [1] . A absoluta maioria dos mais de 5 mil municípios não tem condições
de pagar a remuneração que um novo modelo requer. O mesmo ocorre com boa parte
dos governos dos estados. Nesse caso particular dos vencimentos, é necessário
redefinir as condições do atual pacto federativo, para que a esfera federal
auxilie os demais nessa empreitada tão urgente.
Outro aspecto essencial diz
respeito à inserção da escola no conjunto das referências políticas, culturais
e institucionais da comunidade próxima. Isso significa a opção pelo regime de
tempo integral das crianças na escola, com o aproveitamento de seu espaço nos
horários livre e nos finais de semana. Com todas as observações críticas que
possam ser feitas às experiências dos CIEPs (Brizola no estado do Rio de
Janeiro) e dos CEUs (Marta na prefeitura de São Paulo), é de algo com
inspiração similar que a educação está a exigir.
Esse novo tipo de projeto
educacional não pode ser objeto de avaliações meramente quantitativas, para
saber de seu potencial e do uso adequado de recursos. É óbvio que o controle da
verba pública é necessário e os processos devem ser submetidos a avaliação.
Porém, não se trata da velha cartilha da comparação com as despesas e receitas
da economia doméstica no final do mês. E menos ainda da avaliação típica das
empresas, em sua contabilidade de eficiência baseada na redução dos gastos para
aumentar os lucros. Aqui a abordagem deve ser diferente.
A educação é um bem público e
seus efeitos deverão ser sentidos para as próximas gerações. A questão não é
tanto o foco de cortar gastos no presente, mas de otimizar a sua utilização,
fazendo que os resultado sejam potencializados no futuro. O contrato social da
opção pelo ensino público e universal pressupõe um compromisso da sociedade em
alocar uma parte de seus recursos para a formação de seu próprio futuro, assim
como o faz com a saúde e com a previdência social, por exemplo.
NOTA
[1]Isso leva a declarações infelizes, como a Cid Gomes,
governador do Estado do Ceará, durante uma greve em 2011: “Quem quer dar aula
faz isso por gosto, e não pelo salário. Se quer ganhar melhor, pede demissão e
vai para o ensino privado.”
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão
Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela
Universidade de Paris 10.
Nenhum comentário:
Postar um comentário