Estado de Direito expõe limites a conquistas sociais
22/08/2012
Sofia Manzano e Milton Pinheiro,
de Paris (França)
A crise global do capitalismo, que
atinge de forma contundente sobretudo a Europa, coloca aos trabalhadores a
necessidade de pensar as táticas de luta e a conformação institucional às quais
suas organizações foram submetidas. Aqueles países em que se propalava a
alternativa de melhorar as condições de vida da população, e dos trabalhadores,
em especial, pela via da conquista de direitos sociais, econômicos e políticos,
estão caminhando aceleradamente para uma situação em que o próprio direito
conquistado volta-se, agora, contra esses mesmos trabalhadores e suas lutas.
Além da Escandinávia, a França
talvez tenha sido o país em que os trabalhadores lograram alcançar um conjunto
bastante significativo de direitos, como a jornada de trabalho de 35 horas
semanais, a estabilidade no emprego, a representação sindical no local de
trabalho, direitos sociais e trabalhistas bastante amplos que garantiram a
ascensão das condições de vida dos trabalhadores e a redução das incertezas
quanto ao futuro. Esses direitos não foram dados, nem fi zeram parte de uma
“evolução natural” do desenvolvimento capitalista europeu. Foram duramente
conquistados por meio de lutas históricas que remetem à Comuna de Paris.
A França construiu, assim, a partir
da luta da classe operária, sistemas de saúde pública; educação pública;
assistência social - com o chamado aluguel social -; transporte público e
subsidiado; e rendas compensatórias - como subsídio moradia para aqueles que
residirem distante de seu trabalho. Criou também um sistema de relações de
trabalho e previdência social que permitiram aos trabalhadores franceses, no
último meio século, alcançar condições de vida estável, digna e com razoável
conforto. Quando o país percebeu a tendência de redução populacional, devido ao
baixo nível de natalidade, criou programas de incentivo à maternidade com renda
para as mães que tivessem mais filhos.
A reboque do capital
Todos esses direitos positivados,
levaram as organizações dos trabalhadores, seus sindicatos, a Confederação
Geral do Trabalho (CGT), e os partidos de esquerda, principalmente o Partido
Comunista Francês (PCF), a acreditarem que a tarefa da classe operária não era
mais colocar em xeque o sistema capitalista, senão, lutar por reformas
paulatinas que proporcionassem garantias legais a essas conquistas. Dessa
forma, pensavam transformar os direitos (do homem e dos trabalhadores) em
direitos previstos em lei. Ou seja, direitos enquanto horizonte ético-político,
como o direito à vida digna, à saúde, à educação, etc., em direitos como forma
de regulação social – leis positivadas que estabelecem normas de conduta.
Acreditaram ainda que, assim que estivessem assegurados pela lei, esses
direitos estariam garantidos para todo o sempre, o que tornou as estruturas
organizativas dos trabalhadores em meras instituições incorporadas à ordem do
capital e à estrutura do Estado (de direito). Sendo assim, o horizonte em
aberto da possibilidade socialista se transformou no reformismo da “democracia
progressiva” como forma de avanço social.
Ocorre que no Estado moderno, a
estrutura jurídica, seja ela de qual área for, está submetida, em última
instância, às mudanças nas dinâmicas do processo de produção e de acumulação de
capital. Assim, direitos sociais conquistados com muita luta durante anos em
que vigoram um determinado padrão produtivo e de acumulação de capital, são
sumariamente eliminados por reformas de cunho liberal quando muda tal padrão
produtivo e o processo de acumulação de capital entra em crise. Esse é o
processo que se verifica em curso em toda a Europa. Se durante os quarenta anos
seguintes ao pós-segunda guerra mundial os trabalhadores alcançaram melhorar
suas condições de vida frente à exploração do capital, estão agora sendo
jogados novamente nas valas da situação do capitalismo concorrencial-liberal,
similar ao que passaram os trabalhadores do século 19. Aqueles direitos
trabalhistas, sociais e econômicos que acreditaram terem conquistados para todo
o sempre vão sendo eliminados por processos sumários com uma rapidez que
espanta até os mais combativos. No entanto, isso nos permite perceber que as
lutas políticas e sociais para garantir direitos no marco legal da
institucionalidade burguesa são um jogo da cena política que precisamos romper,
por meio da luta dos movimentos sociais não fragmentários; do operador político
e das organizações dos trabalhadores que não estão agregadas à ordem do
capital.
Para piorar a situação, os
operadores políticos construídos pelos trabalhadores, seus sindicatos, suas
centrais sindicais e seus partidos, tendo se transformado em meros instrumentos
do aparato institucionalizado do funcionamento burocrático do capitalismo, não
se apresentam mais como reais operadores dos interesses da classe. São aparatos
institucionais cooptados pela lógica da acumulação de capital em crise que se
rendem às suas chantagens e abrem mão dos direitos duramente conquistados pela
luta de mais de um século. A defesa de “direitos mínimos” passa a ser a
prioridade, portanto o programa de luta é rebaixado, a solidariedade entre as
gerações e categorias de trabalhadores é solapada, e a competição própria do
mercado é cada vez mais internalizada nos comportamentos e na subjetividade da
classe trabalhadora que não vê saída para sua situação, a não ser torcer para
que o seu maior antagonista, o próprio capital, saia da crise.
Para além da simbolismo
Se, por um lado, o fato de uma
conquista social, econômica ou política ser positivada em lei não garante sua
persistência no tempo, já que não há garantia de mudanças no arcabouço jurídico
institucional, a própria positivação de formas de atuação política passa a ser
um instrumento que se volta contra os interesses daqueles que presumivelmente
deveriam defender. Os trabalhadores do século 19 lutaram bravamente pelo
direito ao voto. Ao passo que alcançaram essa conquista, porém, presenciaram,
talvez mesmo sem perceber, o esvaziamento do espaço político institucional.
As democracias representativas
diluem a possibilidade de influência do voto popular nas decisões
parlamentares, aperfeiçoam suas regras e criminalizam quem as coloca em xeque.
Na União Europeia, a distância ampliou-se ainda mais: um trabalhador francês
está muito distante do parlamento europeu, e ainda mais dos conselhos diretores
do Banco Central Europeu, e da própria União Europeia, que são, atualmente, as
instituições que tomam as decisões que irão impactar diretamente sua vida. O
voto, então, é apenas um rito insignificante do processo político, porque a
conformação da ordem burguesa em uma política e dois partidos fechou as portas
para os novos atores.
Os trabalhadores lutaram e
conquistaram direitos trabalhistas, direito à greve, direito a ter seus
sindicatos, direito a representação no local do trabalho. Mas então, mais uma
vez, esses direitos se voltam contra suas lutas, já que delimitam, impedem e
criminalizam qualquer ação dos trabalhadores que não esteja estritamente nos
marcos legais. Assim, uma greve nos transportes deve manter determinada
quantidade de veículos em funcionamento, de modo que a greve passa a ser apenas
um ato simbólico, deixando de ser um instrumento político. Qualquer ação fora
dos parâmetros legais passa a ser crime e o aparato policial do Estado está
sempre pronto a agir em nome da ordem, ou seja, da ordem do capital.
Além disso, o próprio fato de uma
reivindicação se consolidar num direito previsto em lei, mas que, na maior
parte das vezes demanda orçamento e regulamentação pública específica, esvazia
a luta, desmobiliza e remete à esfera das instituições a mitigação dos
problemas causados pelo sistema econômico explorador. Essa institucionalização
desmobiliza os trabalhadores em luta, abate os ânimos, solapa a solidariedade e
aguça o comportamento da saída individual, esgarçando o tecido social e
alimentando a xenofobia.
Sofia Manzano é economista, professora
universitária e diretora do ICP/Unicamp.
Milton Pinheiro é professor de Ciência Política da
UNEB e autor/organizador, entre outros, dos livros: 140 anos da Comuna de Paris
(2011) e A reflexão marxista sobre os impasses do mundo atual (2012), ambos
pela Editora Outras Expressões.
Originalmente Publicado em: http://www.brasildefato.com.br/node/10368
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