Documentos ultrassecretos provam que a ditadura brasileira chegou a exportar técnicas de tortura à militares da região
O Brasil pode ter tido um papel mais importante que os EUA nas ditaduras latino-americanas, embora a articulação estreita entre Brasília e Washington para perseguir militantes de esquerda nos anos 60 e 70 seja ainda quase desconhecida para a história oficial.
A missão de desvendar os meandros dessa cooperação e o verdadeiro papel que militares e civis brasileiros desempenharam em ditaduras como as do Chile, Argentina, Paraguai, Uruguai e Bolívia caberá à recém-instaurada Comissão da Verdade, diz o pesquisador norte-americano Peter Kornbluh em entrevista ao Opera Mundi.
Segundo Kornbluh – que esteve em maio em Brasília
para reunir-se com membros da Comissão –, existem papéis ultrassecretos que
provam que o Brasil exportou técnicas de tortura para os países vizinhos, além
de fornecer respaldo político, ajuda financeira e suporte material para
ditadores militares da região.
Leia mais:"Comissão da Verdade brasileira tem de ser agressiva nas buscas", diz Peter Kornbluh
“Nós sabemos, por exemplo, que o presidente (brasileiro Emílio Garrastazu) Médici e o presidente (dos EUA Richard) Nixon mantiveram um canal de comunicação ultrassecreto sobre a intervenção brasileira no Chile e, possivelmente, em outros países do Cone Sul no início dos anos 70”, diz Kornbluh, que é diretor dos Arquivos da Segurança Nacional. A organização de Washington, fundada em 1985, é especializada no requerimento, interpretação e publicação de documentos secretos norte-americanos liberados para consulta pública sobre os golpes na América Latina.
Documentos secretos obtidos pela organização de
Kornbluh em agosto de 2009 revelam a cooperação estreita entre Nixon e Médici.
Num dos memorandos revelados, o presidente norte-americano diz a seu colega
brasileiro: "espero que possamos ter uma colaboração estreita, uma vez que
há muitas coisas que o Brasil pode fazer, como país sul-americano, e nós, dos
EUA, não podemos. A relação entre ambos era tão importante, diz a análise feita
na época pela National Secutiry Archives, que ambos estabeleceram um canal
privilegiado de contato, "como forma de manter a comunicação direta sem
usar os canais diplomáticos formais".
Médici tinha como canal seu assessor direto, o chanceler Gibson Barbosa, mas
"para assuntos extremamente privados e delicados", indicou o coronel
Manso Netto. Do lado norte-americano, o contato era Henry Kissinger,
conselheiro e confidente de Nixon. Toda a comunicação estabelecida por meio
desse canal secreto permanece desconhecida.
Kornbluh começou a lidar com arquivos secretos na
década de 60, quando investigou papéis do governo norte-americano sobre a crise
dos mísseis em Cuba. Na época, a então União Soviética transportou para a ilha
mísseis capazes de alcançar o território dos EUA em plena Guerra Fria. Kornbluh
também mergulhou em arquivos do episódio que ficou conhecido como Irã Contras
quando, em 1986, durante o mandato do então presidente Ronal Regan, figurões da
CIA foram flagrados traficando armas para o Teerã, mesmo com o regime sob
embargo. Ele publicou dois livros sobre o tema, além de um terceiro, mais
tarde, sobre a ditadura no Chile, que recebeu do jornal americano Los
Angeles Times a classificação de “livro do ano” de 1998.
O pesquisador norte-americano é figurinha fácil
em programas de reportagem investigativa como o 60 Minutes, da rede CBS,
e congêneres da CNN. Sua informações e análises sobre o papel dos EUA
são conhecidas, mas o envolvimento com os arquivos brasileiros será algo novo,
que pode revelar detalhes ainda desconhecidos – e desagradáveis – sobre o real
papel brasileiro na história latino-americana.
Acusação direta
Em maio, o Opera Mundi publicou
reportagem especial na qual fontes brasileiras e chilenas acusam a
Embaixada do Brasil em Santiago do Chile de ter sediado as reuniões prévias ao
golpe liderado pelo general Augusto Pinochet, além de ter facilitado o envio da
primeira linha de crédito à ditadura chilena por empresários brasileiros, no
valor US$ 100 milhões.
“O único brasileiro presente na noite em que a
Junta Militar chilena prestou juramento, no dia 11 de setembro (dia do golpe),
foi o então embaixador do Brasil no Chile (Antônio Cândido da Câmara Canto), em
cuja residência foram feitas as reuniões-chave para que Pinochet se juntasse ao
golpe", disse a jornalista e escritora chilena Mónica Gonzalez, autora do
livro La Conjura – Os Mil e Um Dias do Golpe.
"Empresários de São Paulo financiaram o
grupo de ultra-direita Patria y Libertad que perpetrou atividades terroristas
para desestabilizar o governo [de Salvador] Allende. Torturadores brasileiros
vieram ao Chile após o golpe para ensinar técnicas de tortura, interrogar e
levar de volta ao Brasil ativistas brasileiros exilados no Chile",
completou um dos assessores diretos de Allende, o atual diretor do PNUD
(Programa da ONU para o Desenvolvimento), Heraldo Muñoz.
Para Kornbluh, declarações como as de Mónica e
Muñoz podem ser provadas por documentos ainda desconhecidos. O pesquisador é um
grande conhecedor do poder de certos papéis empoeirados. Em 1998, quando o
democrata Bill Clinton era presidente, ele conseguiu a liberação de 24 mil
documentos secretos da CIA, do Departamento de Defesa, do Departamento de
Estado, do Conselho de Segurança Nacional e do FBI sobre a participação dos EUA
no golpe de 11 de setembro de 1973, no Chile. Pouco tempo depois, Kornbluh
aplicou o mesmo modelo de busca para o caso argentino, onde conseguiu acesso a
mais de 5 mil informações até então reservadas da ditadura militar.
“A ironia poética do envolvimento dos EUA na
América Latina é que isso criou um rico acervo que pôde ser usado para revelar
quais violações dos direitos humanos foram cometidas no passado e quem as
cometeu. Esperamos conseguir informações semelhantes no Brasil nos próximos
meses”, disse.
Jogo duro
Kornbluh diz que um dos obstáculos ao trabalho da
Comissão da Verdade no Brasil ainda é a relutância das fontes militares em
liberar papéis, por exemplo, sobre a Guerrilha do Araguaia – movimento de
resistência armada à ditadura que foi aniquilado pelo Exército Brasileiro em
seguidas investidas, entre 1972 e 1975, na região norte.
Os documentos relativos à operação nunca foram revelados
pelos militares, mesmo depois da condenação do Estado brasileiro pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos em dezembro de 2010, pela “detenção
arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas, entre membros do
Partido Comunista do Brasil e camponeses da região” do Araguaia. Eles dizem que
os papéis foram todos destruídos.
Kornbluh diz que o argumento é
comum e já foi usado em outras ditaduras da região. "Na Guatemala, a
Comissão transformou num assunto o fato de os militares negarem informações,
esconderem documentos. A publicidade disso fez com que alguns militares
guatemaltecos dessem passos significantes adiante, liberando mais documentos
sobre o papel do alto comando nas atrocidades massivas”, conta. “A Comissão de
Verdade do Brasil deveria ser agressiva na busca por registros militares e, se
os militares não cooperarem, deveria então estar preparada para dar publicidade
geral, responsabilizando os que obstruírem os registros desta história negra.”
A sugestão foi, aparentemente,
feita por Kornbluh aos membros da Comissão da Verdade no Brasil, embora o
pesquisador tenha se negado a dar detalhes sobre o encontro realizado em
Brasília, em junho.
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