Charge de Carlos Latuff, retirada de seu site: http://latuffcartoons.wordpress.com/ |
Agora, a bola da vez são as rodovias e as ferrovias. Em seguida virão portos, hidrovias e os aeroportos, que já estão na fila de espera. Parece evidente que conceder a exploração de um aeroporto ao capital privado por 25 anos é uma forma de privatização.
Paulo Kliass
Parece que tudo começou com a postura defensiva
adotada pela Presidenta Dilma, quando da apresentação de seu novo pacote de
benesses ao capital privado - o Plano Nacional de Logística (PNL). No dia 15 de
agosto, durante a cerimônia no Palácio do Planalto, o discurso já iniciava com
o rebatimento antecipado das críticas que eram esperadas. De acordo com seu
entendimento, não se tratava ali de privatização alguma, mas tão somente de
concessão. Mas, afinal, qual a diferença entre esses dois processos? Tentemos,
pois, entender um pouco melhor esse “imbroglio”.
A exemplo do
ocorrido em outras circunstâncias posteriores a 2003, o anúncio do plano
evidenciava uma espécie de ruptura com as propostas que sempre foram defendidas
pela maioria dos integrantes do PT, antes de chegarem ao poder no plano
federal. O próprio tema da privatização havia sido um ponto sensível do debate
eleitoral no final de 2011, com a ofensiva cristalina da candidata contra o
adversário tucano. Assim, imaginava-se que não haveria risco de o governo
recuperar tal assunto e colocá-lo de novo no centro da agenda política.
Privatização inclui outras modalidades além da
venda de estatais
O argumento
apresentado por Dilma e por todos aqueles que tentam, desesperadamente, escapar
da acusação de “privatista” é bastante frágil. Até tento compreender a
necessidade política dos governistas defenderem seus representantes a todo
custo, inclusive em momentos difíceis como esse. Mas a tarefa é inglória, além
de complicada. Na verdade, tentam se apegar a uma definição restritiva e
meramente juridicista do conceito de privatização. Aí, até que fica fácil, numa
abordagem de simples aparência, sem que se chegue à essência do problema. De
acordo com tal interpretação, só caberia qualificar de privatização ao processo
de venda de uma empresa estatal ao setor privado. E ponto final! Tudo o mais
que escape a essa definição esquemática e casuística deixa de pertencer ao
universo da privatização. Simples assim!
A estratégia
pretende cotejar o PNL com os processos privatizantes ocorridos durante os anos
em que o PSDB esteve à frente do governo federal. Assim, vale todo o tipo de
força expressiva do simbolismo comparativo: “nós não praticamos a privataria
tucana”; “nós não dilapidamos o patrimônio público”, “nós não vendemos empresa
estatal a preço de banana”; “alguém aí viu a Dilma batendo martelo em leilão na
Bolsa de Valores?”; e por aí vai. Ora, se a hipótese inicial fosse mesmo
verdadeira, então não haveria realmente nada mais a acrescentar. Os danos
provocados pela política de privatização nos tempos de FHC foram realmente
muito maiores para o País e para a maioria da população.
No entanto,
o problema é muito mais complexo do que uma mera tentativa de simplificação
oportunista e rasteira do conceito de privatização. A venda de uma empresa
estatal para o setor privado é apenas uma das inúmeras modalidades de
privatização que a história recente do capitalismo nos proporciona. Colocar a
discussão nesses termos assemelha-se muito ao debate acerca do valor “justo” de
venda de uma empresa privatizada. Ora, se por acaso o resultado do leilão da
Vale do Rio Doce tivesse sido superior ao preço de banana obtido, então a sua
privatização deixaria de ter sido um equívoco?
Neoliberalismo e privatização
A tendência
da moda privatizante pelos continentes afora remonta ao início do período
chamado de neoliberalismo. A crise vivida pelo mundo capitalista no final dos
anos 1970 culminou com importantes mudanças políticas em alguns de seus países,
a maioria delas com viés conservador. As transformações mais significativas
foram, com certeza, a chegada de Ronald Reagan, do Partido Republicano, à
Presidência dos EUA e a indicação de Margaret Thatcher como Primeira-Ministra
da Inglaterra, à frente de um gabinete bastante conservador. Uma das
conseqüências mais negativas de tal período foi a consolidação hegemônica de um
discurso liberal radicalizado, em que toda e qualquer menção a Estado ou a
interferência da ação pública era considerado como herético e ineficiente.
Outra
importante herança dessa verdadeira era das trevas no pensamento econômico e
social foi a desconstrução das estruturas erguidas no cenário posterior à
Segunda Guerra, em particular no espaço europeu. Uma verdadeira batalha ideológica
e no terreno contra o Estado do Bem Estar Social, em busca da construção de um
novo paradigma para o processo de acumulação de capital em escala global.
Assim, cada
vez mais foram ganhando espaço na agenda dos organismos multilaterais (Fundo
Monetário Internacional - FMI, Banco Mundial – BM, União Européia – UE, entre
outros) os programas de redução da presença do Estado e os incentivos para a
ocupação crescente dos espaços públicos pelo capital privado. Alguns anos
depois, o simbolismo da queda do Muro de Berlim e a reconversão dos países do
chamado socialismo real ao credo do capitalismo liberal contribuíram também
para reforçar a idéia de que a redução ao chamado Estado-mínimo era uma
necessidade inescapável. Esta era a grande linha diretriz do processo de
privatização: menos setor público e mais setor privado; menos Estado e mais
mercado.
Foram anos
de um verdadeiro esmagamento político e ideológico, onde os meios de
comunicação, os centros de pesquisa e as próprias universidades foram
submetidos a uma espécie de lavagem cerebral generalizada. Os espaços
institucionais para o pensamento crítico e a reflexão questionadora eram
relegados ao mínimo possível. Até mesmo os autores que se alinhavam com a ordem
capitalista, mas numa vertente moderadamente social-democrata (como os
keynesianos), eram identificados como inimigos a serem detonados a todo custo.
Estado mínimo, mercado máximo
Essa ampla
onda de desconstrução da ordem existente foi a característica central do
processo de privatização. As formas de promover a ampliação da presença do
setor privado e da aniquilação do espaço do Estado foram variadas. A mais
evidente e simbólica, sem dúvida alguma, era a venda pura e simples de uma
empresa estatal ao novo proprietário – o empresário privado. Mas mesmo a
simples transferência do patrimônio público para o capital contemplava
múltiplas modalidades: venda direta por licitação; venda por leilão de melhor
preço; venda da maioria de ações com direito a voto; venda da totalidade de
ações, com manutenção das chamadas “golden shares” - quando o Estado ainda
ficava com direito a veto em questões estratégicas; estímulo à formação de
parcerias entre o setor público e o setor privado (PPPs) depois da venda; etc.
No entanto,
para além dessas inúmeras formas de transferência da propriedade da empresa
estatal, o processo de privatização previa, e ainda prevê, outras modalidades
de redução da presença do setor público e de ampliação do espaço de atuação
para o capital privado. E aqui entra um conjunto amplo de medidas, tais como:
i) quebra do monopólio estatal de setores considerados estratégicos; ii) a
desregulamentação de setores monopolizados; iii) a ampliação da concessão de
setores e atividades para o setor privado; iv) a liberalização de certas áreas
à concorrência para grandes grupos internacionais; v) a abertura de setores de
bens e serviços públicos à gestão pelo capital privado; entre outros.
Assim
percebe-se que a concessão de determinadas empresas, áreas ou setores ao
capital privado é apenas um das múltiplas modalidades de se promover o processo
de privatização de uma economia. Trata-se de uma opção estratégica que os
governos adotam por razões que podem ser de natureza variada: falta de
recursos, excesso de dívida pública a ser honrada, promoção de concorrência ou
ainda o conhecido discurso a respeito da suposta superioridade privada face ao
setor público em termos de eficiência.
Ampliar o uso da concessão é, sim, promover a
privatização.
No caso
brasileiro e no debate atual, é evidente que a venda da propriedade de uma
empresa estatal provoca conseqüências mais agudas e mais difíceis de reversão.
Mas nem por isso o modelo da concessão deixa de ser perverso para a maioria da
sociedade. Se alguém se der ao trabalho de estudar os casos concretos, verá que
são raríssimos aqueles em que uma concessão, cujo prazo esteja por vencer, não
seja renovada para os concessionários de plantão. Todo o sistema de transporte
público nos municípios, estados e União é estruturado na base de empresas
concessionárias e permissionárias. O modelo das empresas de energia elétrica é
também montado na base de contratos de concessão. O modelo das operadoras de
telefonia e telecomunicações segue a mesma estrutura.
A exploração
do subsolo e dos minérios também exige a forma contratual da concessão. O
sistema de rádio e televisão prevê a concessão de exploração pelo setor
privado, como os conglomerados Globo, Record, Bandeirantes e demais. E esse
detalhe contratual - concessão - não implica que as empresas operando nesse
conjunto de áreas obedeçam a um comportamento público ou proporcionem
eficiência elevada em seu ramo de atuação. Alguma dúvida sobre o real poder de
tais corporações privadas?
Aqueles que
hoje executam um verdadeiro exercício de contorcionismo retórico para
justificar o injustificável, há poucos anos atrás criticavam a proposta de FHC
de autorizar a exploração de poços de petróleo pelas petroleiras privadas por
meio do sistema de concessão. E criticavam a medida corretamente, pois
tratava-se de uma forma travestida de privatização da atividade de exploração
do combustível – sob a roupagem da concessão abria-se o espaço para o setor
privado entrar no ramo tão rentável quanto estratégico. O mesmo ocorre na área
da saúde, um serviço público essencial, quando os governos oferecem a concessão
da exploração de um hospital ou outro tipo de equipamento para os grupos
privados, sob a forma da chamada organização social (OS). E a analogia vale
também para a área do ensino superior: não é necessário que o governo venda o
patrimônio das universidades federais para que se verifique um processo
paulatino de privatização do sistema. Basta que continue a estimular o setor do
“unibusiness” por meio de programas como o PROUNI para os grupos privados e a
estrangular as universidades públicas por meio de medidas como o REUNI e o
achatamento salarial de professores e funcionários.
Agora, a
bola da vez são as rodovias e as ferrovias. Em seguida virão portos, hidrovias
e os aeroportos, que já estão na fila de espera. Parece evidente que conceder a
exploração de um aeroporto ao capital privado por 25 anos é uma forma de
privatização. Permitir o usufruto econômico de uma ferrovia pública por um
grupo privado por 30 anos é também um jeito sutil de privatizar. Conceder a
exploração econômica de uma rodovia pública a um conglomerado privado não deixa
de ser uma modalidade de privatização. E o mais grave é que a maior parte
desses projetos ainda nem existem. Os investimentos serão financiados de forma
bastante generosa, com recursos subsidiados pelo BNDES e pelo Tesouro Nacional.
A política tarifária será dimensionada de forma a dar a maior rentabilidade ao
empreendedor privado. E a empresa constituída pelo governo federal (Empresa de
Planejamento e Logística - EPL) não terá poder algum de regulação sobre esse
tipo de atividade, pois nem é mesmo é de sua competência legal. Ela deverá ser
apenas a referência de gerenciamento e acompanhamento dos projetos, podendo
estabelecer também alguma ordem de prioridade.
O anúncio do
plano escancarou o que todos sabiam: os recursos públicos da União existem.
Sistematicamente negados para as áreas sociais, agora foram garantidos na ordem
de R$133 bilhões. Mas mesmo assim o governo optou pelo modelo da concessão ao
capital privado para estruturar e operar a rede da logística de transportes. E
assim conseguiu realizar uma verdadeira mágica: sem ter vendido uma única
empresa do setor, conseguiu privatizá-lo quase que completamente. A partir do
PNL, o sistema federal das principais rodovias e ferrovias será todo operado
por empresas privadas, com contratos de concessão cuja duração deverá variar
entre 20 e 30 anos. As próximas gerações poderão fazer um balanço e avaliar
melhor as sutilezas da diferença entre concessão e privatização.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e
Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela
Universidade de Paris 10.
Originalmente publicado em: http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=5740
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