Rafael de Araújo Gomes,
Procurador do Trabalho em Araraquara/SP
No final de seu segundo
mandato, o presidente Fernando Henrique Cardoso encaminhou um projeto de lei ao
Congresso com o objetivo de permitir a flexibilização de direitos trabalhistas,
através da ampla prevalência do negociado sobre o legislado.
Esse projeto de lei (n. 5.483/2001), que chegou a
ser aprovado na Câmara dos Deputados, previa:
“O art. 618 da Consolidação das Leis do Trabalho,
aprovada pelo Decreto-Lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943, passa a vigorar com
a seguinte redação: 'Art. 618. As condições de trabalho ajustadas mediante
convenção ou acordo coletivo prevalecem sobre o disposto em lei, desde que não
contrariem a Constituição Federal e as normas de segurança e saúde do
trabalho'”.
Ou seja, todo e qualquer
direito não previsto expressamente na Constituição Federal poderia ser limitado
ou excluído por completo através de negociação coletiva, exceto se relacionado
à segurança e saúde do trabalho.
Apesar de sua aprovação na
Câmara, esse projeto teve a tramitação conturbada e envolvida em intenso
conflito, sendo energicamente denunciado pela Central Única dos Trabalhadores
(CUT) e pelo Partido dos Trabalhadores (PT) como uma tentativa de flexibilizar
direitos trabalhistas e gerar precarização social.
A resistência encabeçada pela
CUT e pelo PT, em 2001, acabou ganhando a adesão de grande número de outras
entidades e especialistas em matéria trabalhista, entre eles o então presidente
do Tribunal Superior do Trabalho, que defenderam inclusive a
inconstitucionalidade do projeto.
O assunto atraiu, inclusive, a
atenção da Organização Internacional do Trabalho, a partir de provocação da CUT
e do PT, como esclareceu Maximiliano Nagl Garcez, da Assessoria Parlamentar do
Partido dos Trabalhadores1:
“Respondendo a consulta apresentada pela CUT, a
OIT, através do diretor do departamento de Normas Internacionais do Trabalho,
Jean-Claude Javillier, condenou formalmente o projeto de flexibilização do
artigo 618 da Consolidação das Leis do Trabalho (P.L n. 5.483/01, na Câmara, e
agora sob o n. 134/01, no Senado).
A Organização Internacional do
Trabalho considera que o projeto, caso transformado em lei, afrontará diversas
convenções da OIT reconhecidas pelo Brasil, eis que as convenções e acordos
coletivos de trabalho teriam força superior às convenções internacionais
ratificadas por nosso país.
O documento da OIT foi encaminhado
ao governo brasileiro e às centrais sindicais, e condena a possibilidade de que
os acordos coletivos contenham 'disposições que impliquem menor nível de
proteção do que prevêem as convenções da OIT ratificadas pelo Brasil'”.
Por esses motivos queixava-se
em 2002 José Pastore, um dos principais representantes do pensamento neoliberal
no meio trabalhista brasileiro, quanto às dificuldades para se conseguir
aprovar com rapidez o projeto:
“O PT e a CUT fizeram um estrondoso alarde
durante a discussão do projeto de lei 5.483 que alterou o art. 618 da CLT.
Pelos decibéis do alarido, estávamos próximos do fim do mundo. Isso criou no
povo um sentimento de grande apreensão. Dizia-se que a nova lei iria revogar
toda a CLT; que acabaria com o 13º salário, férias, licença à gestante; que os
empregadores imporiam aos empregados condições selvagens; que sindicatos fracos
fariam acordos em favor das empresas.”
A tramitação do projeto chegou
ao fim quando, em 2003, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva requereu,
através da Mensagem n. 78, a retirada do projeto, que então se encontrava no
Senado.
De lá para cá passaram-se dez
anos, o que não é muito tempo. De fato, em se tratando de convicções políticas
e ideológicas sólidas e sinceras, dez anos não deveria ser tempo algum.
Entretanto, o brasileiro que
porventura tiver passado a última década fora do país, e tiver retornado em
2012, sofrerá um verdadeiro choque. Ao abrir os jornais, talvez esse brasileiro
venha a imaginar que foi magicamente transportado, como em um episódio da série
“Além da Imaginação”, para uma dimensão paralela, na qual os fatos ocorrem da
forma contrária ao que ocorre em nosso universo.
Esse brasileiro, que em 2002
leu José Pastore criticar a CUT por resistir ao projeto de lei de
flexibilização de FHC, agora encontrará nos jornais o mesmo José Pastore
dirigindo rasgados elogios à CUT por propor a flexibilização dos direitos
trabalhistas: “A ideia é muito boa, porque prevê uma valorização da negociação
entre as duas partes. Quando a negociação está amadurecida, é preciso dar
oportunidade de fazê-la diferentemente de como a lei [a CLT, de 1943]
estabelece”.
Qual é a “idéia muito boa” da CUT, que José
Pastore está a elogiar?
Trata-se do Anteprojeto de Lei do Acordo Coletivo
de Trabalho com Propósito Específico, elaborado no âmbito do Sindicato dos
Metalúrgicos do ABC e que se tornou, instantaneamente, a “menina dos olhos” do
meio empresarial e dos veículos de comunicação conservadores, como o jornal O
Estado de São Paulo, que publicou em seu editoral: “os novos líderes dos
metalúrgicos do ABC substituíram o confrontacionismo de seus antecessores por
atitudes cooperativas e relações de parceria. Não só aceitaram o sistema de
banco de horas, como também negociaram com as montadoras a flexibilização da legislação
trabalhista”.
Ora, lideranças empresariais
costumam ser bastante coerentes na defesa de seus interesses, bem como na
rejeição de qualquer proposta que redunde em benefício aos trabalhadores e que
acarrete ao mesmo tempo algum tipo de reflexo sobre os lucros. E todas essas
lideranças estão batendo palmas para a proposta da CUT/Metalúrgicos do ABC.
A aproximação envolvendo
CUT/Metalúrgicos do ABC e patronato, nessa matéria, vai além da troca de
elogios. Os discursos de um e de outro tornaram-se praticamente indiscerníveis,
inclusive no ataque de ambos à CLT, como pode ser visto a partir dos seguintes
exemplos:
“As relações de trabalho no Brasil estão sujeitas
a uma legislação extensa e detalhada, nem sempre adequada à realidade dos
trabalhadores e das empresas (...) trabalhadores e empregadores sempre buscaram
superar essa herança limitadora, que se impõe até hoje como um obstáculo ao
pleno exercício... da negociação coletiva (...). As recentes tentativas de
promover a reforma do sistema de relações de trabalho por meio do diálogo
social e da negociação tripartite... esbarraram na resistência conservadora de
parte dos representantes de trabalhadores, empregadores e operadores do
direito”.
“A extensa e rígida legislação trabalhista...
desestimula o mercado formal. A modernização da legislação do trabalho é
fundamental para a expansão dos empregos formais (...). A moderna concepção das
relações de trabalho pressupõe: sistema regulatório flexível, que permita
modalidades de contratos mais adequadas à realidade produtiva e às necessidades
do mercado de trabalho; maior liberdade e legitimidade para o estabelecimento
de normas coletivas de trabalho, que reflitam a efetiva necessidade e interesse
das partes. (...) Um novo sistema de relações de trabalho deve incentivar e
priorizar a negociação voluntária e descentralizada, dentro de um marco
regulatório básico, não intervencionista.”
Alguém consegue distinguir,
nos dois textos acima transcritos, qual é aquele que consta na Agenda
Legislativa 2012 da Confederação Nacional da Indústria (CNI), e qual aquele que
está na Exposição de Motivos do Anteprojeto da CUT? Eu não mais consigo.
E o que propõe a CUT/Metalúrgicos do ABC através
desse Anteprojeto?
Em síntese, o mesmo que
buscava Fernando Henrique Cardoso através do Projeto de Lei n. 5.483/2001, e
portanto o mesmo que a CUT combatia com unhas e dentes há meros 10 anos atrás:
a flexibilização de direitos trabalhistas através da prevalência do negociado
sobre o legislado, autorizando sindicatos e empresas a restringir ou eliminar
direitos através da negociação coletiva.
Mas com algumas diferenças importantes.
A primeira delas é a seguinte: enquanto o projeto
de FHC não autorizava a flexibilização de normas de saúde e segurança do
trabalho, necessárias para a preservação da vida e da saúde dos trabalhadores e
para a prevenção de acidentes, o Anteprojeto da CUT autoriza flexibilizar
inclusive isso. De modo que a aplicação da Norma Regulamentadora n° 18 do
Ministério do Trabalho e Emprego, por exemplo, que prevê normas de segurança
para o setor da construção civil, poderia ser em todo ou em parte afastada
através de um acordo coletivo.
Vejamos outro exemplo: certa
empresa poderá ameaçar realizar demissões alegando não ter condições
financeiras para instalar proteções coletivas em máquinas como prensas e
serras, cujo investimento por vezes é alto. Não se trata de situação
hipotética, casos assim são enfrentados diariamente pelo Ministério Público e
pela Auditoria do Trabalho. Prevalecendo a proposta da CUT, o sindicato poderá
celebrar acordo com a empresa eximindo-a do cumprimento dessa exigência legal,
e assim “salvando os empregos”. Pergunto-me, entretanto, se tal resultado
constituirá compensação à altura para os dedos, mãos e braços que serão
decepados ou esmagados a seguir.
Enfim, a proposta da
CUT/Metalúrgicos do ABC consegue ser pior que a de FHC, pois prevê a
flexibilização inclusive do direito à vida, à saúde e à integridade física dos
trabalhadores.
A segunda diferença está em
que o Anteprojeto da CUT prevê duas condições para que um sindicato possa
celebrar o acordo coletivo com o propósito específico de flexibilizar direitos
trabalhistas: ele precisa obter uma autorização própria a ser emitida pela
Secretaria de Relações do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego, e deve
constituir o Comitê Sindical de Empresa, definido como “órgão de representação
do sindicato profissional no local de trabalho”.
Quanto à primeira condição,
sabe-se de antemão de que forma a autorização será concedida: todo e qualquer
sindicato que vier a pedir, e possuir algum padrinho político, a obterá.
Simples assim. A Secretaria de Relações do Trabalho é, como todos sabem, um
órgão político e não técnico. Não por acaso, há muitos anos ela vem autorizando
a criação de um novo sindicato por dia no Brasil, como já denunciou o Fórum
Nacional do Trabalho, criado pelo Governo Lula e composto por sindicalistas
para discutir os rumos da reforma sindical, cujas conclusões foram depois
esquecidas: “...o processo de criação de um sindicato hoje no país acaba tendo
como único limite a criatividade dos interessados para a denominação das
categorias, muitas vezes sem nenhum compromisso com a real segmentação da
atividade econômica e profissional2”.
Quanto à segunda condição,
sabe-se desde já, também, como funcionará a maior parte dos Comitês Sindicais a
serem criados: existirão, de fato, mas apenas no papel, “para inglês ver”, como
ocorre há muito tempo com as Comissões Internas de Prevenção de Acidentes
(CIPAs), criadas por exigência legal, mas que funcionam na maioria das empresas
de forma praticamente fictícia, sem qualquer efetividade.
E cumpridos tais requisitos,
vale dizer, obtida através de ingerências políticas a autorização do MTE, e
criado formalmente, no papel, o Comitê Sindical, o que acontecerá a seguir?
Nada menos que isto: ganhará o sindicato o poder incontrastável de vida e de
morte sobre todos os direitos trabalhistas hoje reconhecidos e que não estejam
expressamente mencionados no art. 7º da Constituição Federal.
Muitos dirão, então - José
Pastore entre eles, e também Sérgio Nobre, presidente do Sindicato dos
Metalúrgicos do ABC - que nenhum sindicato (quer dizer, nenhum sindicalista)
jamais abrirá mão de direitos trabalhistas, que os acordos trarão apenas
benefícios aos trabalhadores, que não se trata de flexibilização, que a
negociação é a forma “moderna” e “avançada” de resolver os conflitos, que os
trabalhadores e a sociedade só têm a ganhar, etc.
Na condição de Procurador do Trabalho já tive a
oportunidade de constatar que as coisas, infelizmente, não ocorrem assim.
Dou um exemplo concreto: em
2008, realizei em conjunto com a colega Larissa Lima uma audiência pública, com
a presença de representantes de dezenas de sindicatos de trabalhadores e
empregadores rurais da região abrangida pela Procuradoria do Trabalho no
Município de Patos de Minas (oeste de Minas Gerais, com forte presença de
lavouras de café e feijão, entre outras), que foram alertados quanto a
cláusulas que não deveriam ser incluídas em convenções e acordos coletivos.
A necessidade de tal audiência
pública se fez óbvia ante a descoberta da proliferação, em toda a região, de
acordos coletivos firmados com grandes fazendeiros que previam, entre outras
coisas, que: a) o custo das ferramentas de trabalho (enxada e rastelo, por
exemplo) seria suportado pelos trabalhadores rurais; b) o empregador era
dispensado de fornecer na fazenda água potável e fresca; c) seria considerado
como falta o dia em que o empregado não apresentasse a produtividade esperada
pelo empregador, d) não haveria limitação ao número de horas extras diárias
durante a colheita; entre outros absurdos.
Todos os sindicatos que foram
flagrados celebrando acordos assim terminaram assinando com o Ministério
Público termos de ajuste de conduta, comprometendo-se a não mais pactuar tais
cláusulas, sob pena de multa.
Dou agora exemplos mais
recentes, deste ano de 2012 e da rica região do interior de São Paulo que
engloba Araraquara e São Carlos, onde me deparei com diversos acordos,
celebrados por sindicatos de trabalhadores de categorias tradicionalmente
fortes (alguns deles filiados à CUT), instituindo a possibilidade de supressão
de anotação da jornada de trabalho, o desconto salarial por horas negativas
lançadas no Banco de Horas, a redução do horário para descanso e alimentação
para apenas vinte minutos e a sonegação de verbas rescisórias, ente outros
problemas.
Ora, no “admirável mundo novo”
proposto pela CUT/Metalúrgicos do ABC em seu Anteprojeto, acordos coletivos
dessa natureza não poderão mais ser contestados por quem quer que seja - nem
pelo Ministério Público, nem pela Justiça, nem pelos próprios trabalhadores
atingidos -, pois o sindicato, autorizado pelo MTE e tendo constituído um
“Comitê Sindical de papel”, poderá legitimamente celebrar acordos prevendo,
entre outras coisas, que o custo da aquisição de instrumentos de trabalho
competirá aos próprios empregados, que o empregador não precisa fornecer água,
que não mais haverá limitação ao número de horas extras, que o número de dias
de férias por ano será reduzido de trinta para dez, ou cinco, que as horas in
itinere não precisarão ser pagas, que o salário poderá ser pago não até o 5º
dia útil, mas até o 10º, ou 20º, que as normas de saúde e segurança elaboradas
pelo Ministério do Trabalho não se aplicam, etc. Normas internacionais,
editadas pela OIT, poderão ser desconsideradas todos os dias, o que sujeitará o
Brasil a punições no plano internacional, mas internamente o acordo coletivo
supressor de direitos não poderá ser questionado.
Vejam que não estou realizando
aqui um exercício de “futurologia” ao prever que acordos coletivos serão
celebrados nessas condições, em sendo transformado em lei o Anteprojeto da
CUT/Metalúrgicos do ABC. Eu já sei que acordos assim serão firmados, pelo
simples motivo de que hoje em dia, antes mesmo da aprovação do projeto, acordos
desse tipo já são celebrados por inúmeros sindicatos em todas as partes do
país.
A única diferença estará no
fato de que, após a aprovação da proposta da CUT/Metalúrgicos do ABC, acordos
lesivos assim, que hoje são ilegais, não poderão ser questionados e passarão a
ser reconhecidos como se lei fossem entre as partes, vinculando os
trabalhadores.
Em síntese, nos últimos dez
anos operou-se uma radical e surpreendente transformação na postura adotada
pela Central Única dos Trabalhadores, sob o influxo de lideranças como Sérgio
Nobre: de combatente de propostas neoliberais, tornou-se ela proponente de
propostas neoliberais. Da defesa intransigente de direitos trabalhistas, passou
ela a se engajar na flexibilização (leia-se eliminação) desses direitos.
Sem dúvida o leitor terá
notado que, na maior parte dos casos, referi-me à autoria do Anteprojeto de
flexibilização como sendo da CUT/Metalúrgicos do ABC, e não simplesmente da
CUT. Não o fiz por acaso. A CUT é uma grande Central, a maior do país, e ainda
congrega lideranças e sindicatos batalhadores, envolvidos na defesa dos interesses
dos trabalhadores em toda e qualquer situação.
Os ventos que hoje sopram do
Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, que são muito estranhos, e que poderiam com
a mesma facilidade soprar das sedes da FIESP ou da CNI, em sua condenação ao
caráter “arcaico e ultrapassado” da CLT, não são uma unanimidade dentro da CUT,
longe disso. Há uma batalha sendo travada dentro da Central, com alguns
pretendendo torná-la uma cópia da Força Sindical, aproximando-a de propostas de
flexibilização e de acomodação aos interesses empresariais, e outros lutando
contra isso, por ainda acreditarem no princípio da proteção, na impossibilidade
de retrocesso social e nos valores que inspiraram o surgimento da legislação
trabalhista.
Espera-se que, em breve, a CUT
perceba o enorme risco que está a correr ao negar toda a sua história de luta e
todas as expectativas que estão sobre ela depositadas, e anuncie o abandono em
definitivo da proposta flexibilizadora de direitos e geradora de precarização
social.
Pois uma Central Sindical envolvida com a
flexibilização de direitos não será mais uma Central Sindical. Será um balcão
de negócios, a maior parte dos quais inconfessáveis.
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